Tortura na Venezuela não é motivo para piada de suposto ativista

Crédito: Ronaldo Schemidt - 28.jul.2017/AFP Guardas nacionais levam manifestante preso em moto durante protesto em Caracas
Guardas nacionais levam manifestante preso em moto durante protesto em Caracas

PATRÍCIA CAMPOS MELLO
DE SÃO PAULO

A organização Human Rights Watch divulgou um relatório em novembro documentando 88 casos de violações de direitos humanos cometidas pelo governo da Venezuela contra manifestantes e opositores políticos.

São pessoas que foram espancadas, torturadas com choques elétricos, asfixiadas, estupradas com cabos de vassoura. Muitas estão presas há meses, sem nenhuma acusação formal.

Nenhuma delas deve achar a mínima graça na peça que o brasileiro Jonatan Diniz quis pregar na imprensa.

Diniz, 31, ficou preso por 11 dias na Venezuela sob a acusação de ter elos com uma organização criminosa. Na quarta-feira (10), ele divulgou um vídeo em que relata ter premeditado sua detenção a fim de chamar atenção para o trabalho de sua ONG, a Time to Change the Earth (hora de mudar a Terra).

"Eu planejei ir para a Venezuela, chamar atenção e ser preso", diz um sorridente Diniz no vídeo. "Queria essa repercussão para vocês prestarem atenção, tem criança morrendo. Graças a Deus não fizeram nada de mau comigo, e o plano deu absolutamente certo".

Verdadeira ou não, a versão de Diniz parece brincadeira de mau gosto. Para muitos dos 5.400 venezuelanos que foram presos desde o início dos protestos, as coisas não deram nada certo.

E, ao contrário de Diniz, eles não escolheram a prisão.

Apesar de professar solidariedade ao povo venezuelano, o brasileiro reluta em condenar a violência do governo. No vídeo, diz que não vai chamar o regime de Maduro de ditadura, "porque esse foi um apelido dado pela oposição e os dois lados estão errados".

Esse não foi um apelido dado pela oposição. A condenação do autoritarismo de Caracas vem da ONU, da OEA, dos governos da Argentina, do Brasil, dos EUA e outros.

Imbuído de um espírito messiânico, Diniz afirma no vídeo e em suas publicações nas redes sociais ter salvado "centenas de crianças venezuelanas". Não há indícios de que ele tenha salvado alguma criança ao distribuir alguns brinquedos no país e depois fazer publicidade de sua filantropia.

Diniz centra seus ataques na imprensa, que, segundo ele, só dá notícia ruim, porque "vende mais". "Porque quanto mais notícia ruim, a gente cria má vibração no planeta, cria uma realidade estúpida."

Um venezuelano entrevistado no relatório da ONU poderia ficar ofendido com o que alega Diniz. "A primeira vez em que vi minha família, eles não me reconheceram, porque meu rosto estava tão inchado e queimado por produtos químicos". Não parece que ele tenha "criado uma realidade estúpida".

"Então nunca foquem em notícia ruim, que sirva de lição para qualquer jornalista que está aí. Não foquem se eu fui torturado, se o regime é ruim. Foquem em notícia boa, salvamos mais 10 crianças, 1 milhão de crianças."

Se a mídia seguisse as recomendações de Diniz e deixasse de focar "se o regime é ruim", haveria ainda mais espaço para pessoas serem torturadas.

E não consta que você fazer de tudo para ser preso e sair na televisão salve crianças, ou aumente doações para uma ONG que nem sequer foi constituída. A organização que ele criou não tem cadastro na Receita Federal, nem conta no banco ou sede.

Resta à mídia, porém, fazer um mea culpa.

Ávidos por mais uma história sobre os crescentes abusos da ditadura de Nicolás Maduro, os veículos embarcaram na armação de Diniz com muito pouco ceticismo.

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.