Descrição de chapéu The New York Times

Ex-policial rebelde da Venezuela contou sua história antes de morrer

Crédito: Inaki Sugasti - 13.jul.2017/AFP Óscar Pérez, em protesto antichavista em julho; suposto policial rebelde é alvo de operação
Óscar Pérez, em protesto antichavista em julho

NICHOLAS CASEY
DO "NEW YORK TIMES"

Para Óscar Pérez, o fim havia chegado.

O sangue escorria pelo rosto do rebelde, e seus comandados lutavam por entre armários e fornos, enquanto as forças do governo venezuelano invadiam seu esconderijo. Horas mais tarde, Pérez e meia dúzia de seus companheiros jaziam mortos.

Pérez, morto na segunda-feira da semana passada por forças do governo, passou os anos finais de sua vida estrelando em narrativas espetaculares –às vezes como herói nas telas de cinema, outras como rebelde na vida real.

Ele foi protagonista de um filme de ação, no papel de um piloto que combatia o crime, saltando de paraquedas e carregando o cachorro às costas. Então, em junho, ele se apoderou de um helicóptero durante protestos na Venezuela, atirou contra a Corte Suprema e desfraldou uma faixa na qual apelava ao país que se rebelasse.

Embora suas ações cativassem muitas venezuelanos –e enraivecessem o governo–, nos dias finais sua vida a audiência de Pérez havia se reduzido muito.

Mas ele passou muitas tardes e noites deste mês digitando em seu celular, enviando mensagens criptografadas ao "New York Times". Os dois lados tentavam confirmar a identidade do interlocutor por meio do envio de curtas mensagens em vídeo, durante o diálogo.

As mensagens de texto enviadas em dezembro e janeiro, acompanhadas por gravações e entrevistas feitas no mesmo período, trazem algumas das palavras finais do homem mais procurado da Venezuela, um policial renegado que capturou a imaginação do país, um combatente fugitivo que ocasionalmente parecia compreender que seus dias estavam contados.

"Luto pela liberdade do país, por um amanhã melhor", ele disse, certa tarde do começo de janeiro, falando em um aplicativo de mensagens. "Medo de morrer é o que menos tenho, agora. Não tenho medo de morrer, mas tenho de fracassar, de deixar as pessoas na mão."

O corpo de Pérez estava sob guarda em um refrigerador do necrotério de Caracas, com dois ferimentos a bala e a mandíbula quebrada. No domingo, o governo liberou o corpo, que foi sepultado nu, mas envolto em um lençol branco. Perto do local do sepultamento, um homem empinava uma pipa com a palavra "liberdade".

Pérez era ator, detetive e insurgente. Para o governo, era terrorista. Para seus seguidores, era um combatente pela liberdade, um herói popular moderno ao molde de Robin Hood ou Che Guevara. Alguns céticos dizem que a história de Pérez é implausível demais para ser verdade - e pressupõem que ele fosse alguma espécie de agente duplo, cuja função seria a de criar uma imagem negativa para a oposição.

Não importa como as pessoas o vissem, as ações de Pérez ecoaram por todo o país.

Crédito: Marco Bello - 21.jan.2018/Reuters Familiares de Óscar Perez acompanham seu funeral em Caracas, na Venezuela
Familiares de Óscar Perez acompanham seu funeral em Caracas, na Venezuela

A Venezuela vem sofrendo uma crise econômica que deixou hospitais sem remédios e bebês morrendo de subnutrição. Um presidente impopular vem combatendo os protestos com pulso de ferro, em uma onda de repressão que causou mais de 100 mortes nas ruas de Caracas no ano passado, tanto de manifestantes quanto de policiais. Pouca gente parece ter esperança quanto à democracia na Venezuela.

Depois de seu voo de helicóptero pelos céus de Caracas, em junho, Pérez se tornou símbolo das queixas cada vez mais fortes do país. Ele era o policial audacioso que desertou e pedia que outros fizessem o mesmo.

Mas se houve algo que o atormentou até seu último suspiro foi o fato de que a rebelião não veio.

"Queríamos chamar as pessoas às ruas naquele dia, que houvesse grandes manifestações, que as pessoas percebessem que um movimento havia começado", ele disse em uma de suas mensagens. "Infelizmente, isso não aconteceu."

Pérez, que passou a fazer parte da unidade de investigações da polícia venezuelana 15 anos atrás, poderia ter sido só mais um detetive não fosse seu trabalho como ator. O filme que ele estrelou, "Muerte Suspendida", foi lançado em 2015. Ele interpreta um inspetor de polícia chamado Efraín Robles, que resgata um empresário venezuelano de sequestradores.

O filme prenuncia as operações vistosas pelas quais Pérez ganharia fama na vida real. O personagem dele –que também é piloto– persegue criminosos pelas ruas da capital venezuelana de avião, e no final do filme chega ao iate do vilão usando um traje de mergulho e carregando um fuzil.

Pérez disse que o filme também mostrava o tipo de força policial que ele desejava existisse na Venezuela: retratos de criminosos exibidos em telas de alta resolução. Cenas de crimes cuidadosamente investigadas por técnicos forenses. Homens de jaleco branco analisando resultados.

Mas Pérez disse que a realidade que ele vivia era muito diferente, com o colapso da economia do país. "Não restam recursos", ele afirmou. "Os técnicos que operam os equipamentos precisam comprar por conta própria os suprimentos de que precisam para o trabalho."

Outros acontecimentos começaram a enervá-lo.

Grupos armados favoráveis ao governo, conhecidos como colectivos, começaram a operar abertamente, associados a policiais corruptos para roubar e praticar extorsões.

Investigações começaram a ser bloqueadas, o que incluía a investigação de cargas de cocaína que ele denunciou repetidamente. Pérez disse ter sido instruído a fechar os olhos quanto a isso. Seu relato de corrupção na força policial não pôde ser confirmado por meio de outras fontes.

"Eram eles que traficavam drogas", disse Pérez sobre funcionários do governo.

Entre esses funcionários, segundo ele, estava Nestor Reverol, hoje ministro do Interior e da Justiça na Venezuela. (Reverol foi indiciado nos EUA pela acusação de bloquear investigações sobre traficantes de drogas, quando comandava a Guarda Nacional.)

Pérez disse que vinha pensando há muito tempo em usar o helicóptero para mostrar sua dissensão ao país. No ano passado, milhares de venezuelanos que compartilhavam de sua ira marcharam pelas ruas durante quatro meses de sangrentos protestos contra o presidente Nicolás Maduro. Pérez declarou que atribuía a Maduro e seu governo a culpa por todos os males que se abateram sobre a Venezuela: a escassez, a corrupção e a disparada no crime.

Uma semana antes de roubar o helicóptero, o irmão de Pérez foi morto por assaltantes que levaram seu celular, ele disse. O homicídio, a facadas, aconteceu a dois quarteirões de sua casa.

"Tive de identificar meu irmão no necrotério, seu corpo congelado estendido em uma gaveta de ferro", ele disse. "Você é policial e tem de ver alguém tão próximo morrer por conta do flagelo do crime criado por esse mau governo."

Em, 27 de junho, ele decolou no helicóptero, dizendo que era hora de estabelecer um exemplo público para a Venezuela.

Os céus sobre Caracas estavam claros quanto as explosões ecoaram: eram granadas de choque lançadas do helicóptero, com o objetivo de chamar a atenção sem causar dano, disse Pérez. Depois, ele pilotou o helicóptero na direção da sede do Ministério do Interior, contra a qual disparou tiros de festim.

Uma multidão assistia ao espetáculo que se desenrolava no céu, e Pérez desfraldou uma bandeira pedindo que as pessoas lá embaixo se rebelassem.

"O objetivo era despertar as pessoas, apelar para que não perdessem a esperança", ele disse. "E não só o povo mas os funcionários públicos. Que eles também despertassem."

Os eventos chocaram o país. Por algum tempo, muita gente imaginou que houvesse um golpe em curso. Mas Pérez estava agindo apenas com um pequeno grupo de companheiros, e os partidos de oposição não ecoaram seu apelo.

Ele disse que foi forçado a aterrissar em um descampado quando o helicóptero sofreu uma falha hidráulica. Os moradores chamaram as autoridades mas Pérez escapou antes que elas chegassem.

Ele havia se tornado um fugitivo - mas conquistou a atenção do país.

No entanto, seus apelos para que o povo se rebelasse parecem não ter sido atendidos. Em 30 de julho, Maduro consolidou ainda mais seu poder, criando um órgão formado por aliados para retirar os poderes do Legislativo venezuelano, o único ramo do governo que seu partido não controlava.

As ruas foram militarizadas e a dissidência pública foi proibida por ordem presidencial. Os protestos se evaporaram quase imediatamente.

Enquanto as autoridades se aproximavam mais e mais de localizá-lo, Pérez se mantinha confiante em que conseguiria escapar. "Estamos sempre um passo adiante deles, graças a pessoas que nos ajudam, minha equipe de inteligência, que opera dentro das instituições", ele disse.

Antes de se deitar, na noite de sua morte, Pérez enviou uma mensagem ao "New York Times".

"Ótimo, combinamos depois", ele disse, sobre marcar um horário para sua próxima entrevista. O contato aconteceu à 0h45min.

No começo da manhã de segunda-feira, Pérez postou um vídeo em sua conta no Instagram, informando que havia sido localizado pelas forças do governo.

Inicialmente não se ouviam tiros, no vídeo. Pérez se comunica com um major das Forças Armadas, que está do lado de fora e diz ao rebelde que se renda e que o Estado venceu.

Pérez diz que não se renderá porque teme que os soldados matem civis no edifício.

Todo mundo parece calmo. Mas os vídeos em breve passariam a mostrar cenas caóticas.

Pérez olha para seu celular, com sangue caindo sobre seu olho direito. Pede aos venezuelanos que saiam às ruas imediatamente. Há buracos de balas na parede, e ouve-se tiros ao fundo. Ele diz que tentou se render mas que o governo está usando granadas.

Em um vídeo, Pérez admite que chegou sua hora.

"Que Deus esteja conosco e Jesus Cristo me acompanhe", ele diz. "Derek, Santiago, Sebastian, amo vocês de todo coração, filhos. Espero vê-los de novo em breve."

Mais tarde naquela manhã, o governo venezuelano anunciou que o grupo havia sido "desmantelado". Pérez e outras seis pessoas estavam mortos. Dois policiais foram mortos na operação, segundo as autoridades.

Tradução de PAULO MIGLIACCI

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