Aumenta nos EUA imigração de crianças desacompanhadas

Menores que fogem da violência na América Central viram alvo de Trump

Ativistas carregam por Washington faixa de protesto com os dizeres “sonho americano” antes do Discurso sobre o Estado da União, proferido por Trump
Dois ativistas atravessam rua em Washington com faixa de protesto com os dizeres “sonho americano” vestidos de preto - Brendan Smialowski - 30.jan.2018/AFP
Estelita Hass Carazzai
Washington

Uma das primeiras memórias de Juan (nome fictício) é de sua casa em chamas, quando ele tinha quatro anos.

Natural da Guatemala, como contou a um juiz de imigração, ele e sua família foram desde cedo perseguidos por membros de gangues urbanas. Eles se recusavam a pagar a taxa mensal, "la renta", que o grupo criminoso cobra da população.

Depois de mudar de bairro três vezes, ver o tio morto, ser ameaçado sob a mira de armas e deixar de ir à escola por medo de retaliações, Juan resolveu fugir para os EUA.

Ele chegou à fronteira sozinho em 2014, aos 14 anos, assim como outros milhares de adolescentes um grupo que soma pelo menos 200 mil crianças nos últimos cinco anos e cujo fluxo voltou a crescer nos últimos meses.

A maioria delas foge do aliciamento por gangues e de ameaças de morte em países do chamado Triângulo do Norte (El Salvador, Honduras e Guatemala), que tem uma das maiores taxas de homicídio do mundo. Muitas têm pais que vivem nos Estados Unidos, fugidos antes. Por isso, vão sozinhas à fronteira.

Elas são bem mais novas que os "dreamers" (sonhadores), jovens imigrantes levados pelos pais aos EUA ainda crianças, no início da década. Para esse grupo, bandeira dos democratas, Donald Trump acenou com a cidadania.

Mas, para as crianças desacompanhadas, que a ONU afirma serem parte de uma crise humanitária, o republicano fechou a porta.

Elas não têm status legal no país, não se qualificam como refugiadas, quase nunca conseguem asilo para piorar, segundo Trump, impulsionam a violência em solo americano. 

Um homem quase completamente tatuado com símbolos de gangue e careca se ajoelha de costas para policiais em um páteo de prisão em El Salvador
Membro da gangue Mara Salvatrucha (MS-13) é levado a prisão de seguraça máxima em Zacatecoluca, El Salvador - Jose Cabezas -12.out.17/Reuters

Um projeto de lei em análise quer restringir a concessão de asilo para crianças, que teriam de provar risco de vida se deportadas ao país de origem. Outro prevê a deportação imediata de crianças que não sejam vítimas de tráfico de pessoas ou que não tenham medo de retornar ao seu país.

"Muitos membros de gangues se aproveitam de lacunas em nossas leis para entrar no país como menores desacompanhados", disse o presidente, em discurso ao Congresso na terça (30).

Na ocasião, Trump levou ao plenário os pais de duas adolescentes mortas pela MS-13, uma gangue criada por imigrantes nos EUA e que se espalhou pela América Central. "Não podemos imaginar a extensão de sua dor", disse o presidente aos casais, "mas podemos assegurar que outras famílias nunca tenham que passar por isso".

SOZINHOS NA CORTE

Dados mostram que apenas 1,5% dos jovens apreendidos na fronteira são ligados a gangues, segundo a Patrulha da Fronteira dos EUA.

Mas o Departamento de Justiça afirma que há mais deles, que não revelam sua filiação criminosa. Por isso, menores desacompanhados viraram alvo do governo.

Nas cortes de imigração, seus casos se tornaram prioridade, determinou o departamento. Como o governo não tem obrigação de garantir advogado, a maioria precisa representar a si mesma ou seja, crianças de seis anos se veem sozinhas diante de um juiz. No último ano, isso aconteceu em 80% dos processos. Desses, quatro em cada cinco acabaram em deportação.

"Infelizmente, é o que acontece na maioria das vezes", afirmou à Folha Kathryn Kuennen, que assiste as crianças por meio da Conferência Nacional de Bispos Católicos dos EUA.

Nos últimos três meses, 4.000 adolescentes foram deportados a seus países de origem, ou quase metade dos casos analisados. Foi o dobro de deportações dos 12 meses anteriores.

O problema é que as condições nesses países ainda são precárias. Mandar as crianças de volta, segundo Kuennen, é devolvê-las à situação da qual fugiam.

Na Guatemala e em Honduras, cerca de 60% da população vive abaixo da linha de pobreza, segundo o Unicef. Em El Salvador, 32%.

Depois de enfrentarem guerras civis nos anos 1990, os países foram dominados pelo crime organizado, envolvido com o tráfico de drogas e de armas.

"As chances de fugir desse ciclo são ínfimas. Se você é jovem e pobre, está ferrado", diz Abel Núñez, 46, nascido em El Salvador e diretor-executivo da Carecen, que apoia centro-americanos.

As ameaças aos adolescentes vão desde extorsões até a exigência de namoro com membros da gangue. A polícia não protege a população.

Muitas crianças chegam à fronteira com o auxílio de "coiotes" pagos pelas famílias. Boa parte deles tem vínculos com as comunidades e elevada taxa de sucesso.

Mas, uma vez próximas da divisa americana, as crianças são deixadas sozinhas. Uma lei de 2008 obrigou o governo dos EUA a levar crianças desacompanhadas apreendidas na fronteira a abrigos e, então, a um juiz de imigração. Era uma tentativa de diminuir a permanência delas em prisões, misturadas a adultos. Mas acabou sendo aproveitada pelos coiotes, que criaram grandes fluxos de migração pela América Central, coincidentes com a crise de violência na região.

"Foi a tempestade perfeita", avalia Núñez.

Enquanto aguardam a decisão do juiz, muitos adolescentes moram nos EUA, ainda que sem documentos. A maioria vive em grandes centros urbanos, como Los Angeles, Washington e Nova York QG das gangues.

Para Núñez, é aí que parte deles entra para grupos criminosos. "Eles são presas fáceis", afirma.

O Departamento de Justiça tem outra leitura: segundo o secretário Jeff Sessions, membros de gangues estão sendo enviados aos EUA entre esses adolescentes para repor os presos, condenados e deportados.

Editoria de Arte
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