Descrição de chapéu estado islâmico terrorismo

Criança sobrevive após noite na neve durante fuga de sírios

Família atravessou montanhas na fronteira com o Líbano para fugir de guerra

Sarah Mishan, 3, descansa em uma cama de hospital no vale de Bekaa, no Líbano, após ser resgatada nas montanhas que separam da Síria
Sarah Mishan, 3, descansa em uma cama de hospital no vale de Bekaa, no Líbano, após ser resgatada nas montanhas que separam da Síria - Diego Ibarra Sánchez/The Washington Post
Suzan Haidamous
Chtaura (Líbano) | Washington Post

A cadeia de montanhas que forma uma fronteira natural entre Síria e Líbano também é usada há muito tempo como via de passagem em tempos de guerra para pessoas que não podem se deslocar legalmente: traficantes de armas, rebeldes, dissidentes e cidadãos que simplesmente querem fugir.

Uma noite no mês passado ela virou uma armadilha de morte. Uma tempestade se formou quando um grupo de 70 refugiados sírios subia a montanha para tentar chegar ao Líbano.

No escuro, açoitados pelo vento e a neve, os refugiados começaram a fraquejar. Os idosos ficaram para trás. Crianças tropeçavam. Homens escorregavam. Sem conseguirem enxergar seu guia, os refugiados se perderam e se espalharam.

Algumas pessoas em um grupinho pequeno ficaram tão cansadas que decidiram se deitar no chão duro e gelado e tentar dormir.

Ao amanhecer, 15 pessoas tinham morrido congeladas. Foi um marco novo e triste na tragédia da guerra síria, que se arrasta há sete anos. Muitos refugiados já morreram afogados, tentando chegar à Europa, e outros são regularmente abatidos a tiros na fronteira turca.

Mas este foi o primeiro caso conhecido de um grupo de refugiados que morreram de frio, segundo as autoridades libanesas e a agência de refugiados das Nações Unidas.

O incidente também lembrou ao mundo dos esforços desesperados que continuam a ser feitos por sírios para escapar dos combates, enquanto o mundo lhes fecha suas portas. Os EUA e a Europa não são os únicos a limitar a entrada de sírios —os países vizinhos fecharam suas portas faz tempo.

Para os que ainda fogem para o Líbano, país que já abriga cerca de 1 milhão de refugiados sírios, o único caminho para chegar lá é por uma das rotas de contrabando que passam sobre as montanhas.

O destino desses refugiados recentes veio à tona quando funcionários de entidades humanitárias postaram fotos no Facebook informando sobre os horrores daquela noite. Três adultos e uma criança estavam deitados, mortos, rígidos, um ao lado do outro. Um garoto estava acocorado ao lado de um muro.

Uma mulher tentara se abrigar num arbusto de espinhos. A criança que ela carregava no colo tinha caído de ponta-cabeça de seus braços, com os pés, calçando tênis cor-de-rosa, apontados para o céu.

E uma garotinha foi encontrada deitada na neve, ainda viva. Alguém a pegou no colo e a levou para o hospital de Chtaura, uma cidade próxima. Metade de seu rosto estava queimado pelo frio, e ela estava em coma devido ao frio.

Na UTI, a menina virou mais um pequeno ponto de interrogação na tragédia de uma guerra maior. Os médicos se perguntavam quem ela era. Por que nenhum parente veio procurá-la? Será que conseguiria sobreviver?

Shihab al-Abed, 43, é um dos sobreviventes do grupo que atravessou as montanhas; ele e 13 familiares tentaram fazer a travessia, mas seis morreram em uma nevasca
Shihab al-Abed, 43, é um dos sobreviventes do grupo que atravessou as montanhas; ele e 13 familiares tentaram fazer a travessia, mas seis morreram em uma nevasca - Diego Ibarra Sánchez/The Washington Post

FUGA

Entre os que atravessaram a montanha naquela noite estavam Shihab al-Abed, 43, e 13 outros membros de sua família, todos vindos do vilarejo de Barghouz, na província de Deir  al-Zour. O vilarejo está sob controle do Estado Islâmico há anos, mas era pequeno e insignificante demais para ser envolvido nas batalhas que já fizeram mais de 300 mil mortos em outras partes do país.

Segundo Shihab, a vida dos habitantes continuara mais ou menos em paz. Quando contou a história, ele estava na casa de seu irmão em Trípoli, cidade do norte do Líbano.

Mas tudo mudou no final do ano passado.

O Estado Islâmico estava sendo expulso rapidamente de todos seus principais redutos. Enquanto fugiam de outras áreas, mais e mais combatentes começaram a aparecer em Barghouz. Em novembro o Exército sírio tomou conta da cidade próxima de Bukamal, e de repente Barghouz passou a ser última linha de resistência das forças do EI, cada vez menores.

Após uma noite de combates intensos em dezembro, quando a casa de sua família foi atingida por um morteiro, a família decidiu que teria que fugir para sobreviver, contou Shihab. Eles embarcaram em veículos e viajaram à capital, Damasco Shihab, sua mãe, sua esposa, sua irmã, suas quatro filhas e um filho, três netos, uma cunhada e duas sobrinhas.

Em Damasco, entraram em contato com um contrabandista de pessoas que disse que os poderia levar ao Líbano em segurança. A viagem custaria US$ 140 por pessoa, e a rota seria curta e fácil, prometeu o contrabandista: meia hora de caminhada ao lado da rodovia e eles chegariam ao Líbano.

"Mas ele estava mentindo", disse Shihab.

Quando chegaram à fronteira, na noite de 18 de janeiro, em vez de permanecerem ao lado da rodovia, o contrabandista mandou a família subir a montanha ao lado, indicando uma série de luzes piscantes mais ao alto na escuridão e dizendo que deveriam segui-las.

Lá eles encontraram outro contrabandista, que disse se chamar Abu Hashish e que seria seu guia pelo resto da viagem.

Segundo autoridades de segurança libanesas e funcionários dos serviços de resgate locais que já socorreram pessoas na montanha em ocasiões anteriores, é comum os contrabandistas mentirem aos clientes, levando-os a acreditar que vão seguir uma rota fácil.

Se soubessem de antemão como o percurso seria difícil, muitas pessoas se negariam a fazê-lo.

Abir, 17, carrega em seu colo Beshayer, 1, que sobreviveu à nevasca nas montanhas; a bebê sofreu queimaduras no rosto devido ao congelamento
Abir, 17, carrega em seu colo Beshayer, 1, que sobreviveu à nevasca nas montanhas; a bebê sofreu queimaduras no rosto devido ao congelamento - Diego Ibarra Sánchez/The Washington Post

TRAVESSIA

Os Abed ainda não tinham ideia do que havia pela frente. Eles saíram andando no escuro, sob chuva forte, seguindo Abu Hashish e as letras brancas grandes estampadas nas costas de sua jaqueta: Polícia.

O caminho foi ficando cada vez mais íngreme, enquanto o tempo piorava. O vento virou um vendaval uivante. A chuva se transformou em neve. Como a maioria dos refugiados do grupo, os Abed vestiam roupas leves. Hanan, a filha de 13 anos de Shihab, calçava sandálias de plástico e as tinha tirado para poder caminhar mais rápido.

Não demorou a ficar claro que o grupo não conseguia acompanhar o guia.

A mãe de Shihab, Hasba, 70, foi a primeira a ficar para trás. A esposa dele, Anout, sua irmã, Dalal, e suas filhas Amal e Abir ficaram mais atrás, tentando ajudar Hasba.

Em pouco tempo tinham perdido Abu Hashish e o resto do grupo de vista. Então perderam Hasba no meio do vendaval. Amal carregava seu filho de 1 ano, Yasser. Abir, grávida de sete meses, também estava tendo dificuldade para continuar. Ela entregou sua filha de 1 ano, Beshayer, a outra refugiada para que a carregasse.

As mulheres foram ficando cada vez mais geladas e sentindo cada vez mais sono. "Então decidimos descansar um pouco", relatou Abir, que sobreviveu àquela noite.

"Nos deitamos no chão e dissemos que retomaríamos a caminhada pela manhã."

Mais adiante, Shihab carregava no colo sua sobrinha Sarah, de 3 anos. Ele disse que sua recordação do resto da noite é confusa. Eles subiram um pico montanhoso, desceram do outro lado e então havia outro pico a subir. Passaram por um homem morto ao lado do caminho. Uma adolescente chorava ao lado de seu corpo.

Em dado momento Shihab escorregou e fraturou as costelas. A menina em seus braços estava gelada e imóvel. Ele próprio mal conseguia mais caminhar. Então ele deitou sua sobrinha na neve e seguiu caminho. "Ela estava fria e não se mexia", explicou. "Pensei que ela tivesse morrido."

Hanan al-Abed, 13, sobreviveu à travessia das montanhas; ela teve que se desfazer das sandálias de plástico que usava para fazer o caminho mais rápido
Hanan al-Abed, 13, sobreviveu à travessia das montanhas; ela teve que se desfazer das sandálias de plástico que usava para fazer o caminho mais rápido - Diego Ibarra Sánchez/The Washington Post

DESPERTAR

Abir acordou ao amanhecer. Sua avó, mãe, irmã e sobrinho estavam imóveis a seu lado. "Estavam congelados, rígidos. Torci para que estivessem apenas dormindo, ela contou. Pude ver uma casa, então fui até lá pedir ajuda. Era um posto do Exército. Foram buscar meus familiares."

Sete horas depois de iniciarem o trajeto, Shihab e os outros sobreviventes chegaram à base da montanha. Ele foi informado da morte de sua mulher, mãe, irmã e neto Yasser. Sua sobrinha Sarah, a irmã e a mãe dela estavam desaparecidas.

No hospital na cidade próxima de Chtaura, funcionários da defesa civil estavam trazendo outras pessoas que tinham encontrado na montanha. Algumas estavam mortas, outras ainda viviam. Ao longo dos dois dias seguintes eles encontrariam um total de 15 corpos, todos menos três de pessoas que fugiam das batalhas na província de Deir al-Zour. Seis dos mortos eram da família Abed, segundo a polícia.

Os sobreviventes, em sua maioria, estavam em boas condições físicas; foram tratados e tiveram alta no mesmo dia, segundo o médico George Kortas, diretor do hospital. Mas uma garotinha de idade estimada em 3 anos estava em condição crítica, mal reagindo a estímulos e apresentando queimaduras de gelo de terceiro grau no rosto.

A menina passou dois dias em coma na UTI. Metade de seu rosto era uma massa de cicatrizes enegrecidas, de onde seu rosto tinha ficado encostado na neve. Os médicos temiam que ela não sobrevivesse.

No terceiro dia ela começou a dar sinais de vida. No quarto dia ela falou pela primeira vez. "Quero ir com a mamãe", ela disse em voz fraca.

"É um milagre ela ainda estar viva", disse Kortas. "É uma garotinha forte, e seus órgãos se recuperaram bem. Mas ela vai precisar de muitas cirurgias plásticas para poder levar uma vida normal."

Ele e os outros médicos não sabiam quem era a menina. Todos os refugiados que morreram tinham parentes no Líbano que foram aos necrotérios do vale de Bekaa para buscar os corpos.

Mas ninguém veio procurar a menininha —até o quinto dia, quando seu pai apareceu no hospital. Ele vivia em Trípoli e só tomara conhecimento do que aconteceu com seus familiares desaparecidos quando viu fotos no Facebook.

Mishan al-Abed, pai de Sarah, no hospital Bekaa no Líbano; ele só encontrou a filha cinco dias após o resgate
Mishan al-Abed, pai de Sarah, no hospital Bekaa no Líbano; ele só encontrou a filha cinco dias após o resgate - Diego Ibarra Sánchez/The Washington Post

A mulher encontrada morta no arbusto de espinhos era sua esposa. A menina que estava nos braços dela era sua filha de 4 anos, Heba. O homem percorreu todos os necrotérios até encontrar seus restos mortais e levá-los para serem sepultados em Trípoli. Apenas mais tarde ficou sabendo que havia uma menina no hospital que ninguém tinha ido procurar. Era sua outra filha.

Foi um reencontro desajeitado. O homem só tinha visto Sarah uma vez na vida, quando ela era bebê, porque estava vivendo no Líbano, enquanto sua família permanecera na Síria. Minha filha não me conhece e eu não a conheço, ele disse, segurando-a no colo desajeitadamente enquanto a alimentava com colheradas de ovo, sopa e salada da bandeja do hospital.

Sarah estava fraca, mas comeu com vontade, apontando para os pratos que queria experimentar. E então repetiu as únicas palavras que tinha dito até então. "Quero ir com a mamãe."

Tradução de Clara Allain

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