Crise leva pais venezuelanos a deixar filhos em orfanatos

Com onda de miséria e fome, pais entregam crianças para que elas possam comer

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A venezuelana Dayana Silgado visita sua filha no orfanato Fundana, em Caracas
A venezuelana Dayana Silgado visita sua filha no orfanato Fundana, em Caracas - Alejandro Cegarra/"Washington Post"
Caracas | Washington Post

"Você quer ver os pequenos?" pergunta a assistente social Magdelis Salazar, me chamando para acompanhá-la a um playground cheio de crianças.

Estávamos no maior orfanato da Venezuela, logo após o almoço. O pátio era uma pista de obstáculos cheia de crianças abandonadas. Um garotinho robusto de 3 anos estava sentado num triciclo. Ele é apelidado de "El Gordo". Mas quando foi deixado no orfanato, alguns meses atrás, não passava de pele e ossos.

El Gordo passou rápido por uma garotinha de 3 anos usando uma blusinha florida cor-de-rosa. "Ela quase não fala", disse uma das funcionárias, fazendo cafuné nos cabelos cacheados da menina. Ou não fala mais. Em setembro sua mãe a deixou numa estação de metrô com uma bolsa de roupas e um bilhete suplicando que alguém a alimentasse.

A miséria e a fome vêm crescendo sem parar na Venezuela, onde a crise econômica deixou as prateleiras das lojas sem alimentos, remédios, fraldas e fórmula infantil. Alguns pais estão se vendo sem outra saída senão fazer o impensável.

Estão entregando seus filhos.

"As pessoas não conseguem encontrar comida", me disse Salazar. "Não têm como alimentar seus filhos. Estão entregando seus filhos não porque não os amem, mas porque os amam."

Antes da viagem recente que fiz à Venezuela, eu tinha ouvido falar que famílias estavam abandonando ou entregando seus filhos. Mas não foi fácil encontrar cara a cara as vítimas menores deste país falido. Meus pedidos de autorização para visitar orfanatos administrados pelo governo socialista tinham ficado sem resposta. Um funcionário do setor de proteção a menores me confidenciou que uma visita desse tipo seria impossível e falou das condições devastadoras nos orfanatos, incluindo a falta de fraldas. Alguns centros de atendimento infantil administrados pelo setor privado temiam que, se deixassem um jornalista acessar suas instalações, isso poderia prejudicar suas relações delicadas com o governo.

Minha colega venezuelana Rachelle Krygier me levou à Fundana, uma construção imponente no alto de um morro na zona sudeste de Caracas. Sua família fundou o orfanato e centro de atendimento infantil, uma entidade sem fins lucrativos, em 1991, e sua mãe ainda é a diretora do conselho da organização. Rachelle me contou que foi voluntária na entidade dez anos atrás, quando era estudante. Naquela época, as crianças abrigadas eram quase todas vítimas de violência ou abandono.

Não há estatísticas oficiais sobre o número de crianças abandonadas ou enviadas a orfanatos por seus pais por motivos econômicos. Mas entrevistas com responsáveis pela Fundana e nove outras organizações públicas e privadas que atendem crianças em situações de crise sugerem que o número chegue às centenas ou mais em todo o país.

No ano passado a Fundana recebeu 144 pedidos de acolhimento de crianças, sendo a grande maioria ligada às dificuldades econômicas enfrentados pelos pais. Em 2016, tinham sido 24 casos.

"Não sei o que mais fazer", admitiu Angélica Pérez, 33 anos e mãe de três filhos, quase chorando.

Ela apareceu na sede da Fundana numa tarde recente com seu filho de 3 anos e duas filhas, de 5 e 14 anos. Pérez era costureira, mas perdeu o emprego alguns meses atrás. Em dezembro, quando seu filho menor adoeceu com um problema dermatológico grave e o hospital público não tinha remédios, ela gastou suas últimas economias para comprar pomada numa farmácia.

Seu plano era deixar as crianças no centro, onde sabia que elas seriam alimentadas, e viajar para a vizinha Colômbia para procurar trabalho, com a esperança de poder recuperar seus filhos mais tarde. As crianças geralmente podem passar seis meses a um ano na Fundana, antes de serem entregue a famílias acolhedoras ou para adoção.

"Você não sabe o que é ver seus filhos passarem fome", me disse Pérez. "Você não faz ideia. Eu me sinto responsável, sinto que não cuidei deles. Mas já tentei de tudo. Não há trabalho. E eles não param de emagrecer. O que eu posso fazer, me diga?"

A Venezuela mergulhou numa recessão profunda em 2014, prejudicada pela queda nos preços globais do petróleo e por anos de má gestão econômica. A crise se agravou no ano passado. Um estudo realizado pela organização beneficente católica Cáritas em quatro Estados do país concluiu que a porcentagem de crianças com menos de 5 anos que não são adequadamente nutridas subiu para 71% em dezembro, contra 54% sete meses antes.

O Ministério do Bem-Estar Infantil venezuelano não respondeu a pedidos de declarações sobre o fenômeno de crianças serem abandonadas ou deixadas em orfanatos devido à crise. O governo socialista entrega cestas básicas gratuitas às famílias carentes uma vez por mês. Mas, com o aumento enorme nos preços dos alimentos, as entregas das cestas básicas vêm atrasando.

Durante anos o país contou com uma rede de instituições públicas de atendimento a menores carentes. Essas instituições acolhiam temporariamente crianças e adolescentes que precisavam de proteção de curto ou longo prazo. Mas funcionários do setor dizem que as instituições estão em colapso e algumas correm o risco de fechar, devido à escassez crítica de verbas públicas e outros recursos.

Por isso, cada vez mais, alguns pais vêm abandonando seus filhos na rua.

No distrito pobre de Sucre, em Caracas, oito crianças foram abandonadas em hospitais e outros ambientes públicos no ano passado, contra quatro em 2016. E as autoridades dizem que já registraram nove casos de abandono voluntário por razões de ordem econômica em um centro de atendimento infantil do distrito em 2017, contra nenhum no ano anterior. Uma funcionária do setor de bem-estar infantil em El Libertador, um dos bairros mais pobres da capital, descreveu a situação nos orfanatos públicos e centros de atendimento temporária como sendo "catastrófica".

"Temos problemas graves aqui", disse a funcionária, que pediu anonimato para falar, temendo represálias do governo autoritário. "Há mais crianças abandonadas, sem dúvida. E não apenas há mais crianças abandonadas, como suas condições de saúde e nutrição estão muito piores. Não temos como cuidar delas."

Com o sistema público sobrecarregado, cada vez mais são locais privados administrados por entidades beneficentes e sem fins lucrativos que estão tendo que arcar com o problema.

Leonardo Rodríguez, que administra uma rede de dez orfanatos e centros de atendimento no país, disse que no passado as crianças colocadas em seus centros quase sempre tinham sofrido violência física ou mental em casa. Mas no ano passado as instituições receberam dezenas de ligações até duas por semana de mulheres desesperadas querendo entregar seus filhos às organizações, para que fossem alimentadas. A demanda agora está tão alta que algumas das entidades administradas por Rodríguez têm listas de espera.

BEBÊS

Para dar conta do aumento da demanda na Fundana, a organização abriu uma segunda casa-abrigo em Caracas, com a ajuda de doadores privados. Mesmo assim, ela foi obrigada a recusar dezenas de pedidos de acolhimento de crianças. No Bambi  House, o segundo maior orfanato particular do país, os pedidos de colocação aumentaram 30% no ano passado, segundo sua fundadora, Erika Pardo. Os bebês, antes muito procurados para adoção, agora vêm passando mais tempo sob os cuidados da organização.

"As famílias de acolhimento vêm pedindo crianças mais velhas devido à dificuldade de comprar fraldas e fórmula infantil; quando se encontram esses produtos, eles estão muito caros", disse Pardo. O número de gestantes que querem oferecer seus filhos para adoção também vem subindo.

José Gregório Hernández é proprietário de uma das maiores agências de adoção da Venezuela, a Proadopción. Ele disse que em 2017 sua organização foi procurada por entre 10 e 15 gestantes por mês interessadas em entregar seus bebês para adoção; em 2016, recebera um ou dois pedidos semelhantes mensalmente. A entidade foi obrigada a rejeitar a maioria das mulheres. Ela aceitou 50 crianças em 2017, 20 mais que no ano anterior.

A fome obriga muitas famílias venezuelanas a fazer escolhas dolorosas.

Conheci Dayana  Silgado, 28 anos, quando ela foi ao novo centro alimentar da Fundana para pais em situação econômica crítica. Silgado parecia estar exausta. A camiseta regata que usava deixava à mostra seus ombros magros e ossudos.

Em novembro, depois de perder seu emprego de faxineira da prefeitura, devido a uma onda de cortes orçamentários, Silgado entregou seus dois filhos menores à Fundana. Sabia que ali eles poderiam comer três vezes por dia.

A entidade não aceita crianças mais velhas, então Silgado ainda estava tentando alimentar seus dois filhos mais velhos, de 8 e 11 anos, em casa.

O leite, macarrão e sardinhas oferecidos pelo centro ajudaram, mas ainda não foram o bastante.

Silgado contou que, depois de jantar, seus filhos lhe dizem: "Mãe, quero mais".

"Mas não tenho mais para dar a eles", ela lamenta.

Tradução de Clara Allain

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