Desnutrição atinge até 70% das crianças na Venezuela, diz relatório

Para Comissão Interamericana de Direitos Humanos, situação é 'gravíssima'

Estelita Hass Carazzai
Washington

Quase 70% das crianças venezuelanas de até cinco anos estão desnutridas, sendo 15% delas em um quadro agudo, segundo dados recentes de quatro Estados do país obtidos pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos e divulgados nesta segunda (12).

Em um relatório de mais de 200 páginas, a comissão destaca que a situação da Venezuela é alarmante e gravíssima e, além de fazer recomendações ao país, pede a solidariedade internacional em especial de países que estão recebendo imigrantes venezuelanos, fugidos de uma das mais graves crises econômicas e sociais daquele país.

A comissão, conhecida pela sigla CIDH e sediada em Washington, é um órgão autônomo criado pela Organização dos Estados Americanos (OEA) para promover e proteger os direitos humanos no continente e conta com sete membros independentes. 

"Eles podem ser considerados refugiados, à luz da Declaração de Cartagena", afirmou o brasileiro Paulo Abrão, secretário-executivo da CIDH, mencionando a situação de grave alteração da ordem pública e reiterada violação aos direitos humanos. "É preciso demonstrar solidariedade."

Até a noite desta segunda, o governo venezuelano não havia se pronunciado sobre o documento.

Venezuelanos cruzam a ponta entre San Antonio del Táchira, na Venezuela, e a província colombiana de Norte de Santander - George Castellanos - 10.fev.2018/AFP

O Brasil registrou episódios recentes de agressão contra venezuelanos. Na semana passada, duas famílias tiveram suas casas incendiadas em Roraima, que tem recebido milhares de imigrantes em sua fronteira.

A CIDH informou que irá solicitar informações ao governo brasileiro sobre o caso, em especial sobre o estado das investigações e as medidas que estão sendo tomadas para evitar novas ocorrências do gênero.

"Sabemos que existem profundas situações de pobreza e de exclusão nesses lugares. Essa reação adversa é uma atitude mais instintiva que racional. Mas não se pode tolerar isso", afirmou o presidente da CIDH, Francisco Eguiguren. "Uma das decisões mais dramáticas que uma família pode tomar é abandonar seu país."

FOME E VULNERABILIDADE

Os dados sobre desnutrição na Venezuela são alguns dos mais dramáticos do relatório divulgado nesta segunda (12).

A CIDH não pode visitar o país para produzir o documento, em razão da negativa do governo de Nicolás Maduro. Mas reuniu informações colhidas por organizações não-governamentais e opositores do governo, além de organismos internacionais.

Foi assim que a comissão descobriu que quase 80% dos venezuelanos afirmaram ter perdido peso involuntariamente em 2016, e não foi pouco: 8,7 kg em média, segundo uma pesquisa conduzida por universidades do país.

Escolas não têm merenda suficiente para alimentar os alunos; populações indígenas passam até dois meses à base de manga, por falta do que comer; e a escassez se reflete nos postos de saúde e hospitais, que não têm medicamentos.

"Uma simples gripe na Venezuela, hoje, pode custar muito caro", afirmou Soledad García Muñoz, relatora especial da CIDH.

Índios, mulheres e crianças são as populações mais expostas, de acordo com o documento. As mulheres passam até 14 horas por semana em filas para conseguir farinha e arroz, enquanto gestantes e lactantes estão ainda mais sujeitas à desnutrição, o que gera novos problemas.

O Hospital Central de Maturín, no norte do país, registrou 19 mortes de recém-nascidos em apenas um mês, informa o relatório. Em outro hospital, ao longo do primeiro semestre do ano passado, foram 100 mortes.

Para a CIDH, o governo Maduro não tem adotado todas as medidas a seu alcance para garantir o direito à saúde, ao recusar ajuda estrangeira, por exemplo.

"A crise econômica não pode ser justificativa para a inação estatal", avalia o relatório.

CRISE POLÍTICA

O documento ainda manifesta preocupação com o quadro constitucional da Venezuela, que afirma estar em paulatina deterioração.

A comissão destaca as milhares de prisões arbitrárias (pelo menos 5.341 delas, em 2017) durante manifestações contra o governo Maduro, que levaram a pelo menos 124 mortes, segundo relatório da ONU.

Denúncias de tortura contra manifestantes chegam às dezenas à CIDH, inclusive de violência sexual.

Estudantes que acampavam em frente a uma universidade e foram detidas pela polícia, em julho de 2017, afirmaram ter sido estupradas com canos; um homem detido no Estado de Zulia relatou agressões com um cabo de vassoura.

O documento também manifesta preocupação com o cerco à liberdade de expressão no país. Pelo menos 49 rádios e 5 televisões perderam licenças concedidas pelo governo no ano passado, e 30 jornalistas estrangeiros já foram expulsos da Venezuela desde 2016.

A comissão destaca a retórica agressiva de Maduro com relação aos meios de comunicação, que associa a golpistas e conspiradores, e à política de segredo do governo, ao não divulgar dados oficiais sobre a economia ou mortalidade infantil.

"É o caso atual mais prolongado de deterioração das instituições democráticas na América Latina", afirmou Edison Lanza, também relator da CIDH.

A comissão solicitou uma visita à fronteira da Venezuela com a Colômbia, para verificar in loco a situação dos migrantes. O governo venezuelano negou o pedido, mas o órgão ainda aguarda a resposta das autoridades da Colômbia, país que recebeu 690 mil venezuelanos no ano passado.

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.