Descrição de chapéu

Fuzil AR-15, usado em massacre, é fácil de obter nos EUA

Arma, vista por alguns como 'o fuzil da América', é símbolo de abismo cultural

Fuzil AR-15 como o usado em massacre na Flórida é mostrado por vendedor em loja em Orem, Utah (EUA)
Fuzil AR-15 como o usado em massacre na Flórida é mostrado por vendedor em loja em Orem, Utah (EUA) - George Frey/AFP
MARC FISHER
Washington Post

O AR-15, o fuzil de estilo militar que um atirador usou para matar 17 pessoas num colégio do sul da Flórida na quarta-feira (14), é ao mesmo tempo uma arma altamente potente, um símbolo de liberdade e individualismo e um motivo de preocupação e desesperança com o futuro da democracia.

Dependendo do lado político e social com que cada pessoa se identifica, o AR-15 é o "fuzil da América", uma maneira de "controlar seu próprio destino", ou uma máquina de matar que não tem lugar legítimo na vida civil.

Cada vez que um jovem sai disparando em uma escola ou outro local público, o país mergulha num debate inflamado sobre se a arma usada pelo atirador e a cultura que a cerca são ou não um problema ruinoso, singularmente americano, que precisa ser remediado com urgência.

Utilizado em chacinas em Newtown (Connecticut), Las Vegas, San Bernardino (Califórnia) e outros locais que foram palcos de tragédias, o fuzil virou um barômetro dos debates americanos não apenas sobre o direito de porte e uso de armas de fogo, mas também sobre o papel do indivíduo, os limites corretos à ação do governo e o impacto sobre os jovens de videogames, filmes e outras formas de cultura pop.

O AR-15 é visto como algo que carrega conotações de heroísmo (um anúncio da Remington diz que ele "lhe dá a confiança e o poder de fogo para dar conta da tarefa"), resistência política (regulação maior deixará o governo "subjugar americanos" e forçá-los a "viver sob uma tirania", disse um executivo da Associação Nacional do Rifle), diversão ("matar zumbis antes de isso ter virado cool", segundo outro anúncio) e assassinato em massa (segundo vários estudos, pentes de munição de grande capacidade foram utilizados em mais de metade das chacinas ao longo de quatro décadas).

Os fuzis AR-15 e relacionados estão entre as armas mais procuradas e lucrativas dos Estados Unidos. O AR-15 dispara uma bala cada vez que o gatilho é puxado --logo, é semiautomático--, mas pode ser modificado facilmente para disparar continuamente até o gatilho ser solto. Um anúncio de um artefato de US$ 500 para converter o fuzil desse modo garante aos fregueses que "o novo gatilho 'drop-in' vai converter seu AR básico num fuzil (quase) totalmente automático, sem a necessidade de passar pelo processo oneroso de autorização exigido pela Lei Nacional das Armas de Fogo".

Nikolas Cruz, que na quinta-feira (15) se confessou culpado do massacre, comprou seu AR-15 legalmente, segundo Peter Forcelli, agente especial encarregado da filial em Miami do Escritório de Álcool, Tabaco, Armas de Fogo e Explosivos.

Segundo estudo da Fundação Nacional de Esportes de Tiro, 1,3 milhão de fuzis de assalto são vendidos anualmente.

As iniciais do AR-15 não indicam assault rifle (fuzil de assalto), mas a fabricante original do fuzil, Armalite. A arma é descendente das metralhadoras usadas pela infantaria nazista contra as forças soviéticas na Segunda Guerra Mundial.

Nos Estados Unidos, o AR-15 nasceu de um contrato fechado em 1957 entre o Pentágono e a Armalite, que fabricou a arma com plástico e alumínio próprio para aviões, no lugar da madeira e do metal mais pesado usados nos fuzis tradicionais (a arma desse tipo mais popular no mundo é o "parente" russo do AR-15, o AK-47, ou Kalashnikov, que data de 1947 e também é usado frequentemente por terroristas e assassinos em massa).

O AR-15, mais tarde chamado M-16, foi projetado para dar aos soldados americanos a confiança de que sua arma de fogo abateria o inimigo com eficácia. O M-16 foi a arma mais usada pelos EUA na Guerra do Vietnã; seus descendentes, principalmente a carabina M4, fazem parte do equipamento militar padrão até hoje.

O AR-15 não vendeu muito bem no mercado civil durante anos, em parte devido à sua ligação com o conflito do Vietnã, que não era visto por ninguém como exemplo de grandeza dos EUA. Muitos aficionados de armas não gostavam do AR-15 porque era muito leve; alguns diziam que parecia um brinquedo.

Mas o fuzil reconquistou sua popularidade em 2004, quando o presidente George W. Bush revogou a proibição de armas de assalto decretada em 1994 na administração de Bill Clinton.

E em 2005 Bush promulgou uma lei que isenta fabricantes e vendedores de armas de responsabilidade por crimes cometidos com seus produtos. A NRA descreveu a medida como "a medida de legislação pró-armas mais importante dos últimos 20 anos".

Os AR-15 passaram a voar das prateleiras. As vendas voltaram a crescer durante a administração Obama, quando o país sofreu uma onda de chacinas, que, por sua vez, levaram a chamados de democratas pelo retorno da proibição às armas de assalto. Campanhas persistentes da NRA e de muitos defensores republicanos dos direitos ao uso de armas difundiram a ideia de que Obama pretenderia proibir e confiscar as armas de fogo dos americanos, o que levou a um aumento maciço nas vendas. Obama nunca lançou nenhuma iniciativa dessa natureza.

Como o aborto, a imigração e a correção política, as armas de assalto dividem o país em dois grupos fortemente separados por seu vocabulário, cada um dos quais encara as motivações do outro com cinismo extremo.

O próprio nome do fuzil é controverso. Seus adversários o descrevem como "fuzil de assalto", dizendo que foi idealizado exclusivamente para matar pessoas e não tem utilização recreativa legítima. Seus defensores, que preferem falar em "fuzis semiautomáticos" ou "fuzis de estilo militar", alegam que o AR-15 não difere de outros fuzis e que é apropriado para caçar, para praticar tiro ao alvo e para a defesa pessoal. A NRA o descreve como "o fuzil da América".

ABISMO CULTURAL

Nas últimas décadas esse fuzil de estilo militar passou a simbolizar não apenas a divisão política entre os partidários do controle de armas e os partidários do direito às armas mas também o abismo cultural existente entre os que consideram que armar-se a serviço da vingança justificada é algo essencialmente americano e aqueles para os quais a sociedade deveria procurar maneiras menos violentas de resolver conflitos.

Nas áreas do país onde a posse de armas ainda é comum, o AR-15 virou um produto de família. Ele é tão fácil de usar --é leve e simples de disparar-- que alguns varejistas o recomendam para crianças. De acordo com a NRA, o AR-15 é o fuzil mais usado nos treinos e competições de tiro.

Seus pentes de munição com 30 balas permitem disparar rapidamente, mesmo sem o fuzil ter passado por modificações. E, diferentemente da compra de pistolas, não autorizada para menores de 21 anos e que requer um período de espera de três dias antes de uma transação ser concluída, qualquer pessoa com 18 anos ou mais e sem ficha na polícia pode sair de uma loja de armas na Flórida com um AR-15 em questão de minutos (Nikolas Cruz tem 19 anos).

Ao mesmo tempo em que boa parte da publicidade de fuzis é voltada ao uso esportivo e à autodefesa, o AR-15 deu lugar a uma indústria crescente que gera e atende a pessoas que têm o uso de fuzis de assalto como hobby. Os entusiastas às vezes descrevem o AR-15 como "a boneca Barbie dos homens", uma coleção quase infinitamente maleável que os donos podem reforçar com visores infravermelhos, cabos, faroletes e outros acessórios. Os donos de AR-15 geralmente possuem pelo menos três versões do fuzil e gastam mais de US$ 400 com acessórios para cada fuzil, segundo pesquisas da indústria.

A popularidade do fuzil cresceu com a presença constante do AR-15 em videogames de tiro em primeira pessoa tremendamente populares, como a série "Call  of  Duty", e pelo fato de serem onipresentes em filmes de ação.

Estudos realizados sobre a ligação entre comportamentos violentos e imagens de fuzis de estilo militar em filmes, na televisão e em videogames chegam a conclusões contraditórias. Muitos dos responsáveis por crimes hediondos cometidos com essas armas tinham se cercado da cultura de armas. Mas também é fato que mais de quatro em cada cinco meninos na idade do estudo secundário jogam videogames, os mais populares dos quais põem o jogador no controle de um fuzil de assalto, e quase todos os meninos deixam suas fantasias no mundo da imaginação.

Uma revista da indústria de armas, "Shooting Sports Retailer", avisou aos donos de lojas de armas que muitos novos compradores estão chegando aos fuzis pelo fato de apreciarem videogames violentos. "Muitos dos novos atiradores que optam por uma arma tática quando compram sua primeira arma de fogo pensam que conhecem armas porque já jogaram muitos videogames de tiro em primeira pessoa", segundo a revista.

Na esteira de tragédias como a chacina na escola Marjory  Stoneman Douglas, os EUA mais uma vez discutem brevemente se essas armas deveriam ser proibidas. Uma pesquisa Pew do ano passado revelou que 68% dos americanos (incluindo 48% dos que possuem armas) são a favor da proibição de armas de assalto. Iniciativas legislativas são propostas e quase inevitavelmente fracassam; em muitas partes do país, o resultado final frequentemente é o aumento dos lugares onde armas de assalto são permitidas: escolas, igrejas, prédios governamentais.

Após o massacre de junho de 2016 na boate Pulse, em Orlando, Flórida, que deixou 49 mortos e foi na época o pior massacre a tiros no país, defensores do controle de armas exortaram os legisladores da Flórida a proibir as armas semiautomáticas, como o AR-15. Mas projetos de lei seguindo o exemplo dos limites aprovados no Connecticut após o massacre na escola primária Sando Hook acabaram morrendo na praia, sem chegar a ser votados. Foram reapresentados este ano, mas tudo indica que terão o mesmo destino.

"Eu ficaria feliz se pudéssemos simplesmente ter uma discussão adulta sobre este assunto", disse a senadora estadual Linda Stewart, democrata da região de Orlando. Ela frequentemente usa fitas em cores do arco-íris em memória das vítimas do massacre na boate. "Não estou muito otimista, e meu tempo está se esgotando."

As leis de armas que vêm recebendo atenção na Flórida este ano se propõem a reduzir as restrições. Uma delas exige que o Estado conceda em até 90 dias autorização de porte oculto de armas a quem o pedir, mesmo que a verificação de seus antecedentes ainda não tenha sido concluída. Mais de 1,8 milhão de habitantes da Flórida têm porte de arma oculta, mais que os de qualquer outro Estado.

O massacre mais recente em uma escola levou alguns políticos pró-armas a se manifestarem contra o AR-15. "Passei minha vida caçando", disse o senador democrata Bill Nelson, falando no Senado na quinta-feira. "Mas um AR-15 não é feito para caçar. É feito para matar."

Nelson é candidato à reeleição este ano e deve enfrentar o governador Rick Scott, republicano que ganhou classificação A+ da NRA. Scott disse na quinta que é favor de impedir o acesso de pessoas mentalmente doentes a armas de fogo. Ele não disse nada sobre armas de assalto.

Tradução de Clara Allain

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.