Milionários das criptomoedas tentam criar utopia em Porto Rico

Investidores aproveitam isenção fiscal e pós-furacão para se instalar na ilha

Brock Pierce (centro), Josh Boles (à esq.) e Matt Clemenson no terraço do hotel em San Juan que é a base dos criadores da 'Puertopia'
Brock Pierce (centro), Josh Boles (à esq.) e Matt Clemenson no hotel em San Juan que é a base dos criadores da 'Puertopia' - José Jiménez-Tirado/The New York Times
Nellie Bowles
San Juan (Porto Rico) | The New York Times

Eles chamaram o que estão construindo de Puertopia. Então alguém lhes disse que o termo pode ser traduzido em latim como "playground eterno", e eles mudaram o nome do projeto para Sol.

Dezenas de empreendedores que enriqueceram recentemente graças a blockchains e criptomoedas estão indo a Porto Rico em massa neste inverno americano. Eles vendem suas casas na Califórnia e fixam residência na ilha caribenha, na esperança de evitar impostos estaduais e federais sobre suas fortunas crescentes, algumas nos bilhões de dólares.

Esses homens —e são quase todos homens— têm um plano para o que pretendem fazer com sua riqueza: querem criar uma criptoutopia, uma nova cidade onde o dinheiro será virtual e todos os contratos serão públicos, para mostrar ao resto do mundo como pode ser a cara de um futuro cripto.

O blockchain, uma espécie de livro fiscal digital que forma a base das moedas virtuais, tem potencial de reinventar a sociedade como conhecemos. E os puertopianos querem comprovar a tese.

Os empreendedores passaram mais de um ano à procura do melhor lugar. Depois que o furacão Maria arrasou a infraestrutura porto-riquenha, em setembro de 2017, e que o preço das criptomoedas começou a subir vertiginosamente, eles enxergaram ali a oportunidade.

Agora os investidores buscam terrenos onde possam construir seus próprios aeroportos e cais. Tomam conta de hotéis e de um museu no bairro histórico da capital, conhecido como Velha San Juan. E estão perto de conseguir que o governo local os autorize a abrir o primeiro banco de criptomoeda.

"O que aconteceu aqui é a tempestade perfeita", disse Halsey Minor, fundador do site de jornalismo CNET. Ele vai transferir sua nova empresa de blockchain, a Videocoin, das ilhas Cayman para Porto Rico neste ano.

Falando do furacão Maria e do interesse por investimentos que surgiu na sua esteira, comentou: "Foi péssimo para a população de Porto Rico, mas no longo prazo será uma dádiva, se as pessoas conseguiram olhar mais à frente".

Porto Rico oferece um incentivo fiscal ímpar: o imposto de renda federal de pessoa física é zero, não há imposto sobre ganhos de capital e os impostos de pessoa jurídica são favoráveis, tudo sem abrir mão da cidadania americana, já que se trata de um Estado livre associado aos EUA.

Por enquanto o governo local parece estar receptivo aos criptoutopistas. O governador vai discursar em março na conferência que eles vão promover sobre blockchain, intitulada Puerto Crypto.

Os recém-chegados a San Juan ainda estão debatendo a forma exata da Puertopia. Alguns querem uma cidade; para outros, basta se radicarem na Velha San Juan. Seja como for, os puertopianos disseram que esperam avançar muito rapidamente.

"Vocês nunca viram um setor catalisar um lugar como verão aqui", disse Minor.

Vista da Velha San Juan, o centro histórico da capital de Porto Rico, do terraço do hotel Monastério, usado como base pelos criadores da 'Puertopia'
Vista da Velha San Juan, o centro histórico da capital de Porto Rico, do terraço do hotel Monastério, usado como base pelos criadores da 'Puertopia' - José Jiménez-Tirado/The New York Times

O MONASTÉRIO

Por ora, os puertopianos ocuparam o Monastério, um hotel de 1.850 metros quadrados que alugaram de base.

Matt Clemenson e Stephen Morris estavam tomando cerveja no terraço do Monastério numa noite recente. Clemenson, 34, e o britânico Morris, 53, querem que duas coisas fiquem claras: que escolheram Porto Rico devido ao furacão e que vieram em paz. "É só quando tudo foi destruído que se pode defender a ideia de reconstruir a partir do zero", falou Morris.

Clemenson é co-fundador da Lottery.com, que está usando o blockchain em loterias. Ele disse: "Somos capitalistas benevolentes, queremos construir uma economia benevolente. Porto Rico é uma joia escondida, uma ilha encantada que sempre foi maltratada e passada por cima. Talvez possamos corrigir isso 500 anos mais tarde."

Outros puertopianos chegaram ao terraço em bando após um dia em busca de terrenos, entre eles, o líder do movimento, Brock Pierce, 37, que como outros chegou à ilha no início de dezembro.

Indagado sobre as diretrizes da ação, respondeu: "Compaixão, respeito, transparência financeira".

Diretor da Bitcoin Foundation, ele é uma figura importante no boom das criptomoedas. Cofundou uma startup de blockchain para empresas, a Block.One, que já vendeu cerca de US$ 200 milhões de uma moeda virtual feita sob medida, a EOS. O valor de todos os tokens de EOS é cerca de US$6,5 bilhões.

Ex-ator mirim, Pierce ingressou no campo do dinheiro digital cedo como jogador profissional de games, garimpando e comerciando ouro no videogame "World  of  Warcraft", esforço financiado em parte pelo ex-assessor de Donald  Trump  Stephen Bannon.

Controverso, Pierce já foi processado por fraude e exibe várias vezes ao dia em seu celular para o grupo "O Grande Ditador", clássico de 1940 em que Charlie Chaplin faz uma paródia de Hitler.

"Tenho medo de que as pessoas interpretem errado o que vamos fazer", disse ele. "Que pensem que só estamos vindo para sonegar imposto."

O antigo Museu da Criança, na Velha San Juan, capital de Porto Rico, foi uma das aquisições dos investidores da 'Puertopia'
O antigo Museu da Criança, na Velha San Juan, capital de Porto Rico, foi uma das aquisições dos investidores da 'Puertopia' - Erika P. Rodriguez/The New York Times

EXPERIMENTO

Bryan  Larkin, 39, e Reeve Collins, 42, trabalham em outro hotel velho, o Condado Vanderbilt, à beira da piscina, com laptops e copos de piña colada gelada à mão. "Vamos converter este lugar na criptolândia", diz Larkin.

Ele já garimpou cerca de US$ 2 bilhões em bitcoin e é o executivo tecnológico chefe da Blockchain Industries, empresa de capital aberto sediada em Porto Rico.

Collins levantou mais de US$ 20 milhões com uma oferta inicial de criptomoeda para a BlockV, sua loja de apps para o blockchain, cujas moedas virtuais valem no total cerca de US$ 125 milhões e cofundou a Tether, empresa que fornece garantias de criptomoedas ligadas ao valor de um dólar e cujas moedas valem cerca de US$ 2,1 bilhões, embora a empresa gere polêmica em seu meio.

"Não quero pagar impostos", diz Collins. "Esta é a primeira vez na história que alguém que não seja rei, governante ou deus pode criar seu próprio dinheiro."

Muitos moradores de San Juan ainda estão tentando decidir como reagir aos recém-chegados da criptomoeda.

Alguns veem a nova onda como uma infusão bem-vinda de investimentos e ideias.

"Estamos abertos aos criptonegócios", disse Erika Medina-Vecchini, diretora de desenvolvimento de negócios do Departamento de Desenvolvimento Econômico e Comércio, que vai lançar uma campanha publicitária voltada ao novo boom de recém-chegados ligados às criptomoedas, diz, com o slogan "o paraíso funciona bem".

Outros temem que a ilha vire um experimento e falam em "criptocolonialismo".

Andria Satz, 33, cresceu na Velha San Juan e trabalha para a Fundação de Conservação de Porto Rico. "Somos o paraíso fiscal dos ricos", disse. "Somos um terreno de experimentos. Gente de fora consegue isenção de impostos, e o os moradores daqui não conseguem alvarás."

O fornecimento de eletricidade em Porto Rico, porém, tem sido inconstante, e para garimpar um só bitcoin é preciso muita energia.

Tradução de CLARA ALLAIN

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