Mulher que explodiu avião sul-coreano em 1987 ainda espera perdão

Kim  Hyon-hui desconfia da participação de norte-coreanos em jogos deste mês

CHICO HARLAN
Daegu (Coreia do Sul) | Washington Post

Até recentemente, ela conseguia passar dias inteiros sem lembrar o que tinha acontecido. Ela preferia assim. O fato aconteceu há tanto tempo, e era tão terrível! Ela havia sido perdoada por seus crimes e tentava construir uma nova versão de sua vida. Casou-se. Teve dois filhos. Frequentava a igreja. Fazia caminhadas curtas relaxantes, nada como as trilhas obrigatórias de quase 100 km que fazia quando treinava para ser espiã.

Mas hoje as lembranças do que Kim  Hyon-hui já fez parecem estar por toda parte. A Coreia do Sul está sediando os Jogos Olímpicos de Inverno neste mês, e até a visão das pistas olímpicas lhe traz memórias de 30 anos atrás, na outra vez em que o país se preparava para sediar os jogos.

Naquela ocasião Kim era uma agente de elite da Coreia do Norte, que agia sob ordens nacionais. Embarcou em um avião de passageiros sul-coreano carregando uma bomba-relógio; deixou a bomba em um compartimento superior. Ela saiu do avião durante uma escala. O avião explodiu.

Houve uma caçada pelos perpetradores. Kim foi capturada e então levada pela primeira vez à Coreia do Sul, presa por um ato de terrorismo que matou 115 pessoas e se destinava a perturbar a Olimpíada de Verão em Seul.

Mulher sul-coreana na penumbra
Kim Hyon-hui na Coreia do Sul - Jun Michael Park/The Washington Post

Trinta anos depois, a vida de Kim fala sobre os contrastes que causam desorientação na península da Coreia, onde a Olimpíada pode ser pacífica ou mortal, unificadora ou divisora, e onde uma terrorista pode se tornar uma dona de casa que se diz entusiasmada para assistir aos jogos de 2018 pela televisão.

"Na Coreia do Norte eu vivia como um robô de Kim Il-sung", disse Kim em uma entrevista. "Na Coreia do Sul posso levar uma nova vida."

Embora Kim tenha tentado estabelecer uma vida principalmente tranquila, as questões que provocaram sua missão inicial ainda repercutem, com a Olimpíada, que começa nesta sexta-feira (9), mais uma vez testando como o Norte vai reagir à comemoração global em terras de sua rival.

Em 1988, a Coreia do Norte pressionou para co-sediar os jogos de verão; não conseguiu um acordo e então lançou uma campanha de violência destinada a tornar o evento insustentável.

Desta vez, Norte e Sul concordaram em marchar juntas na cerimônia de abertura, compartilhando uma bandeira e apresentando um time feminino conjunto de hóquei no gelo, uma demonstração de união que trai anos de tensões.

Kim diz que seu papel mortal no bombardeio do voo 858 da Korean  Air Lines é algo que a deixa triste e envergonhada. "Meus pecados podem ser perdoados?", disse ela. "Provavelmente não serão."

Kim, que deu várias entrevistas sobre o atentado nos últimos meses, com a aproximação da Olimpíada, falou de modo expansivo sobre sua nova vida na Coreia do Sul.

Ela não parece mais a espiã que recebeu oito anos de treinamento físico e ideológico. Ela tem 57 anos. Mora nos arredores da terceira maior cidade da Coreia do Sul. Usa óculos e mantém os cabelos curtos. Não pratica mais taekwondo, nem se interessa mais por combate a faca ou decifração de códigos.

Mas recentemente estava assistindo à televisão e viu outra lembrança de seu passado: a gravação de sua chegada à Coreia do Sul, em dezembro de 1987, quando desceu a escada do avião presa, cercada por homens de terno.

Naquele momento, ainda não estava cooperando com os investigadores, nem tinha admitido que era norte-coreana. Ela já havia tentado se matar uma vez, antes de falar, e usava um dispositivo na boca para impedir que tentasse morder a língua. A primeira parte de sua vida estava terminando, e Kim lembra que nunca pensou que haveria uma segunda parte.

"Eu tinha medo do interrogatório", disse. "Eu achava que era o fim. Pensei que estava nos últimos meses da minha vida. Na minha cabeça, eu cantava uma canção revolucionária norte-coreana."

A vida de Kim como espiã --e o que afinal se tornou sua missão de sabotar a Olimpíada-- começou durante seu segundo ano de estudos no Colégio de Língua Estrangeira de Pyongyang, quando ela foi chamada ao escritório do reitor e lá encontrou um homem do Partido Central.

Seguiram-se várias entrevistas, e finalmente um aperto de mão de um agente especial. "Você foi escolhida pelo partido", disse ele, segundo um relato do livro que Kim escreveu, publicado em 1991. O agente lhe disse para arrumar suas coisas, despedir-se da família e preparar-se para partir no dia seguinte.

Dali em diante, ela foi preparada para ser uma guerreira no exército de espiões internacionais da Coreia do Norte. Estudou japonês. Recebeu um passaporte e um nome falsos --Mayumi  Hachiya. Foi apresentada a um espião mais velho que faria o papel de seu pai. E então, um dia, foi levada de carro a um prédio da inteligência estrangeira e lhe explicaram sua missão: destruir um jato de passageiros da Coreia do Sul.

"Ao destruir esse avião", escreveu Kim em seu livro, citando um diretor da inteligência, "pretendemos aumentar a sensação de caos e afinal impedir que os Jogos Olímpicos ocorram em Seul." As ordens para sua missão, segundo ela, foram escritas a mão por Kim Jong-il, o filho e herdeiro de Kim Il-sung.

Quando ela soube do plano, não pensou nas vidas envolvidas. A trama, disse, era uma "operação técnica". Kim e o agente mais velho receberam cigarros de cianureto, para ser usados caso fossem capturados. Eles receberam ordens de matar-se para não revelar informações.

Nas semanas que antecederam o atentado, segundo o relato de Kim e a investigação da Coreia do Sul, ela e o outro agente viajaram pela Europa, posando de turistas japoneses. Então, em Belgrado, encontraram outros dois agentes, que entregaram a arma escolhida: uma bomba disfarçada de rádio portátil, reforçada por explosivos líquidos em uma garrafa de bebida.

Kim e seu colega agente voaram para Bagdá com a arma. Lá, Kim ativou o relógio e embarcou num voo da Korean  Air para Abu Dhabi. Ela colocou a bomba em uma sacola de compras e a guardou no bagageiro acima do assento. Ela e o outro agente deixaram o avião em Abu Dhabi.

Várias horas depois, o avião explodiu sobre o mar de Andaman. Muitos passageiros eram sul-coreanos com empregos no setor de energia no Oriente Médio, que voltavam para casa para ver suas famílias.

Kim inicialmente não soube se o plano tinha dado certo. Não soube do alerta dado nos noticiários na Coreia do Sul, ou das cerca de 300 pessoas que acorreram ao aeroporto em Seul chorando e nervosas. Mas o que ela sabia é que precisava voltar rapidamente para Pyongyang, tomando uma série de voos complexos, e foi em Bahrein que as autoridades os pararam, percebendo seu roteiro suspeito.

"Posso ver seus passaportes?", disse uma das autoridades, e logo Kim e seu colega perceberam que estavam encurralados. Os dois espiões morderam seus cigarros. O agente mais velho morreu, mas Kim não. Quando ela despertou, sua mão esquerda estava algemada a um leito de hospital, e tinha um tubo de oxigênio no nariz. Homens de uniforme de combate estavam ao seu redor, com metralhadoras a postos.

Segundo relatos de investigadores da Coreia do Sul, Kim sofreu semanas de interrogatório antes de confessar. Foi somente depois de ser extraditada à Coreia do Sul que suas defesas começaram a enfraquecer.

Um dia antes de ela confessar a trama, uma equipe de agentes especiais da Coreia do Sul lhe deu um terno para vestir e lhe disse para entrar em um carro. Levaram-na para um passeio turístico por Seul. Kim viu uma cidade que não parecia nada com o núcleo inimigo miserável que a Coreia do Norte havia descrito. Viu shopping centers lotados de gente, vendedores de comida nas ruas, a aldeia olímpica.

E começou a pensar que sua missão, todo o seu objetivo, tinham sido um engodo.

"Baseado em mentiras", disse ela.

Kim começou a cooperar com os investigadores, e vários meses depois, ainda em detenção, ela viu a abertura da Olimpíada na televisão. "Ainda me lembro da canção-tema que tocaram", disse ela. "Todo mundo parecia feliz. Eu pensei: por que a Coreia do Norte fez isso?"

No princípio, parecia que não haveria uma segunda parte em sua vida. Em 1989, um juiz sul-coreano a condenou à morte. Mas no ano seguinte o presidente sul-coreano, Roh  Tae-woo, a perdoou, dizendo que ela havia sido um instrumento manipulado pelos verdadeiros criminosos, a família governante Kim, da Coreia do Norte.

Ela escapou da ira do público sul-coreano principalmente, segundo notícias da época, ajudada por uma entrevista coletiva que deu em prantos, pedindo desculpas pelo atentado. Depois do perdão, ela escreveu um livro, "Tears of My Soul" (Lágrimas da minha alma) e doou o que ganhou a familiares das vítimas do voo 858 da KAL.

Então praticamente desapareceu da vista do público.

"Foi como se eu tivesse me escondido", disse ela.

Em parte, explicou, não teve opção. A Coreia do Norte tem um histórico de visar desertores de alto nível e agentes capturados. Kim vive sob proteção policial e mantém em particular os detalhes de sua vida. O que ela diz é que é uma "cidadã comum" que cria duas adolescentes, de 16 e 18 anos.

De manhã, cozinha para os filhos e à noite lê. Para relaxar, vai para as montanhas. Seu marido, com quem se casou em 1997, foi uma das primeiras pessoas que conheceu na Coreia do Sul --um dos agentes que cuidaram de seu caso.

Ela diz que continua traumatizada por sua atuação no atentado, mas às vezes se sente obrigada a falar sobre isso. Ela é uma testemunha, segundo disse, da "verdade da Coreia do Norte". É por isso que Kim tem sentimentos mistos sobre como as duas Coreias estão cooperando antes da Olimpíada deste ano --notícias que ela acompanha de perto.

Com seus próprios atletas participando, a Coreia do Norte poderia estar menos inclinada a causar confusão ou violência. Mas Kim também acha que a cooperação serve mais à Coreia do Norte, dando ao país um destaque celebratório, apesar de como trata sua própria população.

As Coreias estão marchando juntas, segurando uma bandeira branca e azul de união, mas Kim disse que os dois países não estão em condições iguais.

"Aquela bandeira não simboliza a paz", afirmou.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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