Coreia do Norte enviou à Síria mísseis e itens para armas químicas, diz ONU

Conclusão é de investigadores que examinam o cumprimento de sanções por Pyongyang

Homem procura pertences em ruínas de prédios de Douma, no reduto rebelde de Ghouta Oriental, na Síria
Homem procura pertences em ruínas de prédios de Douma, no reduto rebelde de Ghouta Oriental, na Síria - Bassam Khabieh/Reuters
Michael Schwirtz
Nova York | The New York Times

A ditadura da Coreia do Norte tem enviado ao regime sírio suprimentos que poderiam ser usados na produção de armas químicas, afirmam especialistas da ONU.

A evidência de uma conexão norte-coreana surge quando os EUA e outros países acusam as forças do ditador Bashar al-Assad de usarem armas químicas contra civis, inclusive em ataques recentes no subúrbio de Damasco chamado Ghouta Oriental, com o que parece ser gás cloro.

Os suprimentos de Pyongyang incluem azulejos, válvulas e termômetros resistentes a ácido, segundo um relatório de investigadores da ONU. 

Técnicos em mísseis norte-coreanos também foram avistados trabalhando em conhecidas instalações de armas químicas e mísseis na Síria, segundo o relatório, que foi escrito por um grupo de especialistas que examinaram o cumprimento das sanções da ONU pela Coreia do Norte.

O relatório salienta o potencial perigo representado por esse comércio entre a Síria e a Coreia do Norte, que poderia permitir que os árabes mantenham suas armas químicas enquanto também daria aos comunistas dinheiro para seus programas nuclear e de mísseis.

Os possíveis componentes de armas químicas fizeram parte de pelo menos 40 carregamentos até então não relatados da Coreia do Norte à Síria entre 2012 e 2017 de peças de mísseis balísticos proibidos e materiais que poderiam ser usados com fins militares e civis, segundo o relatório. O documento não foi divulgado ao público, mas foi examinado por “The New York Times”. 

Nem os autores do relatório nem membros do Conselho de Segurança da ONU que o viram quiseram comentar, tampouco a missão dos EUA no órgão internacional.

Os oito especialistas que formam o painel vêm de diferentes países e possuem perícia específica em áreas como armas de destruição em massa, transporte marítimo e controles de alfândega. 

Desde 2010, o painel tem autorização do Conselho de Segurança para investigar possíveis violações às sanções aplicadas à Coreia do Norte e apresentar suas conclusões em um relatório anual. 

Especialistas disseram que as evidências do relatório não provam definitivamente a existência de uma colaboração constante, mas que fornece o relato mais detalhado até hoje dos esforços para contornar as sanções destinadas a conter o avanço militar dos dois países.

William Newcomb, que foi presidente do painel de especialistas da ONU sobre a Coreia do Norte de 2011 a 2014, chamou o relatório de “um avanço importante”. 

SUSPEITAS

Desde o início da guerra civil na Síria, em 2011, havia suspeitas de que a Coreia do Norte estivesse fornecendo equipamento e conhecimento para manter o programa de armas químicas sírio. 

Essas suspeitas não foram reduzidas quando em 2013 a Síria assinou a Convenção sobre Armas Químicas e afirmou desistir de seus estoques das mesmas.

“Sabíamos que havia coisas acontecendo”, disse Newcomb. “Nós realmente queríamos intensificar o jogo sobre programas de armas químicas e não conseguíamos o que precisávamos para tanto.”

O relatório, que tem mais de 200 páginas, inclui cópias de contratos entre empresas norte-coreanas e sírias, assim como listas de cargas indicando os tipos de materiais enviados. Muita informação foi fornecida por países membros da ONU não identificados.

A relação da Coreia do Norte com a Síria ocupa uma parte do relatório, que também documenta as muitas maneiras como o governo do líder norte-coreano, Kim Jong-un, tentou escapar às sanções.

Ele descreve como a Coreia do Norte usa uma complexa rede de empresas de fachada e cidadãos estrangeiros simpáticos ao regime para obter acesso ao financiamento internacional, emprega operações cibernéticas sofisticadas para roubar segredos militares e recruta seus próprios diplomatas para operações de contrabando.

Ele também critica a Rússia e a China por não fazerem o suficiente para aplicar as sanções sobre artigos como petróleo, carvão e produtos de luxo. 

As sanções, segundo ele, ainda não foram equiparadas “pelas necessárias vontade política, coordenação internacional, priorização e alocação de recursos para promover uma implementação efetiva”.

O relatório dá novos detalhes de uma relação militar entre a Coreia do Norte e a Síria que remonta a décadas. Durante as guerras árabes-israelenses nos anos 1960 e 70, pilotos norte-coreanos voaram em missões com a Força Aérea síria.

Mais tarde, técnicos de Pyongyang ajudaram a desenvolver o arsenal sírio de mísseis balísticos e a construir uma usina de energia nuclear capaz de produzir plutônio, que pode ser usado para fabricar armas nucleares. Israel destruiu a fábrica em 2007.

Em 2015, a Síria comemorou essa ajuda inaugurando um monumento e um parque em Damasco dedicados ao fundador da Coreia do Norte, Kim Il-sung, avô do atual líder. A cerimônia de inauguração, realizada em plena guerra civil na Síria, teve dignitários e militares norte-coreanos e sírios e uma banda marcial.

A Coreia do Norte ofereceu treinamento e apoio ao programa de armas químicas da Síria desde pelo menos os anos 1990, segundo um livro no prelo de Bruce Bechtol, um ex-analista da Coreia na Agência de Inteligência da Defesa dos EUA que também é professor na Universidade Estadual Angelo, no Texas.

O livro também descreve um acidente em 2007 em que vários técnicos sírios, juntamente com assessores norte-coreanos e iranianos, foram mortos na explosão de uma ogiva cheia de gás sarin e do agente nervoso VX, extremamente tóxico. 

A relação com a Síria “foi uma bênção para o complexo militar-industrial norte-coreano”, disse Bechtol em uma entrevista. 

NAVIOS

O relatório da ONU diz que a cooperação continuou durante a guerra civil na Síria, apesar das sanções internacionais. Evidências cruciais disso foram encontradas em janeiro de 2017, quando dois navios carregados de azulejos resistentes a ácido, comumente usados na construção de fábricas de armas químicas, foram apreendidos em pleno mar a caminho de Damasco, segundo o relatório. 

Esses carregamentos estavam entre cinco remessas combinadas em um contrato entre uma companhia de propriedade do governo da Síria e a Korea Mining Development Trading Corp., empresa norte-coreana envolvida em exportação de armas, segundo o relatório. Ele baseou essas conclusões pelo menos parcialmente em cópias de contratos fornecidos pela companhia de navegação, identificada como Cheng Tong Trading Co. Ltd., com sede na China. 

O relatório disse que os três outros carregamentos tinham sido enviados entre 3 de novembro e 12 de dezembro de 2016.

O documento não revela que país interditou os dois carregamentos de azulejos em janeiro ou se os outros três carregamentos foram entregues em Damasco. O contrato estipulava que os materiais deveriam ser entregues à Metallic Manufacturing Factory, companhia dirigida pelo governo sírio que foi penalizada pelo Departamento do Tesouro americano no ano passado por participação na indústria de armamentos síria.

Vários meses antes, em agosto de 2016, uma delegação de técnicos de mísseis norte-coreanos visitou a Síria, quando houve uma transferência de “válvulas e termômetros de resistência especial conhecidos pelo uso em armas químicas”, afirmou o relatório, sem elaborar. Um país membro da ONU não identificado disse aos autores do relatório que técnicos de mísseis norte-coreanos trabalharam em fábricas de armas químicas e de mísseis sírias em Barzeh, Adra e Hama. 

Em 2013, depois que o governo Obama ameaçou ações militares em reação a um ataque com gás sarin contra o enclave rebelde de Ghouta, que matou 1.400 pessoas, segundo alguns especialistas, Assad concordou em destruir seu estoque e entrar para a Convenção de Armas Químicas, que inclui 192 países que devem ter desmontado seus programas de armas químicas.

Mas autoridades ocidentais e especialistas em proliferação há muito suspeitavam que Assad conservou algumas armas químicas. 

Até agora neste ano, segundo diplomatas e testemunhas, vários ataques com gás cloro ocorreram em áreas em poder dos rebeldes em Ghouta, Idlib e Afrin. Outro painel da ONU também disse que as forças de Assad foram responsáveis por um ataque com gás sarin à aldeia em poder dos rebeldes de Khan Sheikhoun em abril passado, que matou pelo menos 83 pessoas e deixou cerca de 300 doentes.

Mallory Stewart, uma ex-autoridade do Departamento de Estado que participou dos esforços do governo Obama para desmontar o programa de armas químicas da Síria, disse que sempre houve preocupações de que o governo Assad não tivesse listado todas as armas de seu estoque na declaração do que ele abandonou. O relatório, segundo ela, “confirma tudo o que havíamos dito”. 

“Certamente o que tentamos fazer no último governo foi desmontar todo o programa de armas químicas”, disse Stewart, “o que agora sabemos que eles não fizeram.”

Definir as origens dessas armas é difícil. Em novembro, a Rússia usou seu veto no Conselho de Segurança para encerrar o trabalho de um painel independente que investigava as armas químicas usadas no conflito na Síria.

O Mecanismo Conjunto de Investigação, como era conhecido, tinha descoberto que o governo sírio e militantes do Estado Islâmico tinham usado armas químicas na guerra, embora o embaixador russo na ONU tenha chamado de “piada” o relatório do painel.

Tradução de LUIZ ROBERTO MENDES GONÇALVES

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