Polônia erra em lei sobre o Holocausto, afirmam historiadores

Punição a quem sugerir cumplicidade polonesa pode sufocar debate no país

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São Paulo

Em 10 de julho de 1941, aproximadamente 40 judeus moradores de Jedwabne, vila no nordeste da Polônia, foram levados até um celeiro para serem mortos e enterrados. Horas mais tarde, cerca de 300 outros residentes, também judeus, foram encaminhados ao mesmo celeiro e queimados vivos.

Extrema direita faz ato a favor de lei do Holocausto em Varsóvia
Extrema direita faz ato a favor de lei do Holocausto em Varsóvia - Dawid Zuchowicz - 5.fev.18/Agencja Gazeta/Reuters

O massacre foi observado de perto pelas tropas alemãs recém-estabelecidas nessa região, que duas semanas antes ainda estava sob ocupação soviética, de acordo com o pacto de 1939 que dividiu a Polônia entre alemães e russos e foi ignorado quando Adolf Hitler invadiu a União Soviética em junho de 1941.

Quem conduziu a matança, porém, não usava uniformes com a suástica. Foram os moradores não judeus de Jedwabne os autores do massacre —em grande parte, vizinhos e conhecidos daqueles que foram assassinados.

Agora, discutir um episódio como esse na Polônia pode render multa ou até três anos de prisão. É o que prevê a lei sobre o Holocausto aprovada pelo Parlamento e promulgada no último dia 6 pelo presidente Andrzej Duda.

Criticado por Israel e pelos EUA, o texto torna crime a sugestão de cumplicidade da Polônia com a Alemanha nos crimes do Holocausto, quando 6 milhões de judeus foram assassinados na Europa —metade eram poloneses.

"Certamente não foi todo o povo polonês, mas sabemos agora, com base em pesquisas das últimas duas décadas, que houve muitos poloneses cristãos que colaboraram com os nazistas contra os judeus, ou fizeram mal a judeus por conta própria sem conexão com os nazistas", afirmou à Folha David Silberklang, historiador-chefe do Yad Vashem, o Memorial do Holocausto em Jerusalém.

Uma dessas pesquisas investigou o massacre em Jedwabne e deu origem ao livro "Neighbours: The Destruction of the Jewish Community in Jedwabne, Poland" (Vizinhos: A Destruição da Comunidade Judaica em Jedwabne, Polônia), publicado em 2001 pelo historiador polonês-americano  Jan T. Gross, da Universidade Princeton.

Segundo Silberklang, cartas e diários de sobreviventes poloneses do Holocausto, encontrados nos últimos 20 anos, sugerem que havia uma hostilidade generalizada contra os judeus.

"Em muitos casos descobrimos que as pessoas caçando os judeus sequer entregaram eles para os alemães, matavam por conta própria", disse o historiador do Yad Vashem. Ele lembra que isso contrariava a norma alemã, que pedia que os judeus fossem entregues vivos.

Ao justificar a lei, o governo polonês mencionou repetidamente que busca reparar erros históricos, citando a expressão "campos de extermínio poloneses", usada para se referir a Auschwitz, por exemplo, localizado na região de Cracóvia, no sul. A expressão, porém, não é mencionada no texto do projeto.

Para a pesquisadora da Universidade Princeton Volha Charnysh, "criminalizar um discurso histórico não patriótico é uma abordagem equivocada para lidar com ignorância histórica".

Charnysh pesquisou o legado do antissemitismo na Polônia e afirma o que o texto da lei é vago e "pode ser usado para criminalizar o debate sobre quaisquer aspectos históricos que se desviem da visão oficial do martírio heroico polonês".

A lei isenta de punição trabalhos acadêmicos e artísticos que abordem o Holocausto. "Mas não isenta discussão pública, educação, eu e você discutindo isso em uma entrevista", disse Silberklang, do Yad Vashem.

"O que a lei provavelmente vai conseguir é sufocar o debate sobre o difícil passado da Polônia e restringir a liberdade de expressão", avalia Charnysh.

POPULISMO

Uma legislação que pune quem sugerir a cumplicidade da Polônia no Holocausto já havia sido apresentada anteriormente, mas só conseguiu ser aprovada agora que o partido populista PiS (Lei e Justiça, na sigla em polonês), tem maioria no Parlamento.

"Nós, os poloneses, fomos vítimas, assim como os judeus", afirmou Beata Szydlo, primeira-ministra entre 2015 e 2017 e uma das principais lideranças do PiS. "É um dever de todo polonês defender o bom nome da Polônia."

Desde 2015, quando o PiS assumiu o governo polonês, o país tem protagonizado embates com a União Europeia, especialmente no que se refere às cotas de refugiados que o bloco tenta distribuir entre os Estados-membros.

A reforma do Judiciário polonês proposta pelo governo, com exoneração de juízes e limitações a sua atuação, também foi alvo de críticas da UE, que ativou em dezembro um processo inédito de sanções que pode terminar com a Polônia sem direito de voto no bloco europeu.

Em novembro, o premiê Mateusz Morawiecki já havia sido criticado por enaltecer uma marcha nacionalista que reuniu 60 mil pessoas em Varsóvia. Apesar de divulgar slogans antissemitas e supremacistas, a manifestação foi classificada como "patriótica" pelo governo.

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