Veterinárias quebram tabus e abrem espaço no Afeganistão

Organização de resgate de animais incentiva as jovens a se formarem e a trabalharem, algo raro no país

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São Paulo

Três jovens estão desafiando paradigmas sociais e religiosos no Afeganistão ao trabalhar como veterinárias na única ONG de resgate de animais do país, em Cabul. Elas têm uma missão: fazer com que outras meninas afegãs acreditem que possam ter educação superior e trabalho —ou, como diz uma delas, que possam ser estrelas.

Na sociedade patriarcal afegã, as mulheres em geral se casam ao passar da idade escolar e permanecem donas de casa para o resto da vida. Elas podem ser presas por fugir de casa ou por “crimes morais”. O país é o 154º dos 159 no Índice de Desigualdade de Gênero da ONU.

As veterinárias Tahera Rezaei (dir), 26, e Malalai Haikal, 24, diante da clínica da ONG de resgate de animais Nowzad, em Cabul, no Afeganistão
As veterinárias Tahera Rezaei (dir), 26, e Malalai Haikal, 24, diante da clínica da ONG de resgate de animais Nowzad, em Cabul, no Afeganistão - Mujtaba Rezaei/Nowzad

Malalai Haikal e Tahera Rezaei há quase quatro anos fazem parte da equipe da Nowzad, que mantém um abrigo e uma clínica em Cabul. O caminho delas até a independência foi cheio de obstáculos, contaram à Folha. Várias vezes ouviram que mulheres não devem ser veterinárias.

“Comecei minha educação com minha mãe, em casa, porque o Taleban estava no poder e meninas não podiam ir à escola. Só quando eles caíram pude continuar meus estudos numa escola secundária”, conta Haikal, 24, criada no Paquistão, mas trazida de volta ao Afeganistão ainda sob o regime da milícia extremista islâmica. 

Sob o Taleban, mulheres não tinham permissão para trabalhar, não podiam receber educação após os oito anos e até aí tinham de estudar só o Corão, livro sagrado do islã. O casamento de adultos com meninas era encorajado. Violações de regras eram punidas com surras e morte. 

“Minha mãe foi para a faculdade de veterinária, mas não prosseguiu por causa da guerra com a União Soviética [nos anos 1980]. Quando viu que eu gostava de animais, ela me incentivou”, conta Haikal, que se formou em veterinária pela Universidade de Cabul em 2016.

“Enfrentei muitas críticas da minha família. Eles me desestimulavam dizendo que uma menina afegã não deveria lidar com animais. Mas meus pais e eu ignoramos.”

Filha de afegãos, Rezaei, 26, nasceu e foi criada no Irã. “Vim para o Afeganistão porque eu não conseguia estudar no Irã. Há regras muito rígidas para afegãos que vivem lá, não permitem que estudemos em certas áreas. Como a guerra no Afeganistão havia terminado, minha família decidiu voltar e recomeçar a vida”, conta ela, que tinha então 15 anos. 

“Quando cheguei, vi animais nas ruas em condições muito ruins. As pessoas têm um péssimo comportamento com eles. Como não havia outras pessoas para ajudá-los, decidi me tornar veterinária.” 

A escolha pela Nowzad foi natural. É a única organização do tipo no país e tem uma política de “empoderamento” feminino. “Eles querem ver as mulheres tendo sucesso por seu esforço. A Nowzad apoia mulheres, trabalhem aqui ou não” , diz Rezaei.

No ambiente de trabalho, elas contam que não sofrem assédio dos colegas, mas sim questionamentos de alguns. 

“Os clientes da clínica sempre ficam impressionados. Querem confirmar se somos veterinárias mesmo”, conta Rezaei. “Alguns ficam felizes e nos incentivam, outros não confiam que sejamos capazes de tratar seus bichos.”

Haikal lembra um episódio com a colega. “Uma vez, um cachorro veio à clínica com o dono que não conseguia por a focinheira. O cão era uma fera, não deixava ninguém tocá-lo. Tahera e eu pusemos a focinheira e o tratamos. O cliente ficou impressionado, disse que éramos ‘superstars’.”

Haikal faz um balanço agridoce e relaciona a melhora na segurança a avanços para as mulheres. O Afeganistão vive hoje um recrudescimento da violência e contínua instabilidade política.

“Apesar de haver mais meninas na escola em Cabul, há poucas no interior. Minha família me ajudou, mas muitas não têm esse tipo de apoio nem permissão para estudar. Espero que a situação melhore para as afegãs brilharem.”

RESGATE DE CACHORRA

A história da Nowzad começou em 2007, quando o fuzileiro naval britânico Pen Farthing resgatou uma cachorra na cidade afegã de Now Zad, na província de Helmand. 

Desde então, mais de 850 gatos e cachorros resgatados por militares em todo o Afeganistão foram cuidados e preparados pela ONG para serem enviados para o país de origem dos tutores, principalmente EUA e Reino Unido.

No ano passado, pela primeira vez, a Nowzad mandou uma cachorra resgatada na região de Bamiyan para um civil no Brasil. 

Além dos tabus de gênero, a ONG ajuda a combater outro: para muçulmanos, cães são animais sujos e não devem conviver com humanos.

“Nosso objetivo é encontrar uma casa para todos os animais do nosso abrigo; primeiro em lares no Afeganistão, onde começamos a ter grande sucesso, ou, no caso daqueles que foram resgatados ou cuidados por estrangeiros, queremos repatriá-los no Ocidente”, explica Najwa Naderi —também uma mulher e gerente do escritório de Cabul da Nowzad. 

A clínica é totalmente financiada por doações e, além dos veterinários profissionais, mantém um programa de estágio em parceria com instituições como a Universidade de Cabul. 

A ONG também realiza operações de CED (captura-esterilização-devolução), com o objetivo de reduzir a população de animais de rua, e vacina contra a raiva todos os animais atendidos. 

“Cada cão ou gato que esterilizamos significa menos animais vagando pelas ruas de Cabul para sofrer uma curta vida de fome, crueldade e doença”, explica Naderi. 

Atualmente estão no abrigo em Cabul mais de 130 cachorros, 40 gatos e 6 burros. O transporte de um cachorro para os EUA custa até US$ 5.000 (cerca de R$ 16 mil); de um gato, até US$ 3.000 (cerca de R$ 9.700).

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