'Big Brother' da eleição russa flagra fraudes em todo o país

Imagens de funcionários colocando votos a mais em urnas viralizam em redes sociais da Rússia

Homens em fronte a telas que transmitem em tempo real a imagem dos locais de votação da eleição russa
Homens em fronte a telas que transmitem em tempo real a imagem dos locais de votação da eleição russa - Sergei Karpukhin/Reuters
 
Moscou

Uma espécie de “Big Brother” criado para dar transparência às historicamente questionadas eleições russas virou a maior fonte de provas de fraude no pleito presidencial deste domingo (18).

O Kremlin, além de preocupado com a questão da legitimidade de um pleito no caso de o boicote pregado pelo opositor Alexei Navalni pegar, quis evitar uma repetição dos protestos de rua devido à falta de lisura na disputa. Para tanto, criou um site, o Nossa Escolha, no qual era possível acompanhar imagens de câmeras de segurança instaladas em todos os 97 mil pontos de votação espalhados pelo país.

O tiro saiu pela culatra, se a intenção do governo era só aplacar críticos. As redes sociais foram inundadas por imagens claras de funcionários eleitorais preenchendo urnas com votos extra. Em um caso em Liubertsi, perto de Moscou, uma seção eleitoral teve seus votos anulados pelo flagrante, que se repetiu em lugares distantes como Makhachkala (Daguestão) ou Krasnodar (Sibéria).

A Comissão Eleitoral Central informou que todas as denúncias serão apuradas e urnas, invalidadas em caso de comprovação. Disse também, contudo, que não viu nenhuma violação séria ao longo do dia e, pelo que emergiu até agora, não parece haver um movimento suficiente para influenciar decisivamente o resultado da eleição.

Em alguns pontos de votação, o jeitinho deu as caras para facilitar irregularidades. Balões coloridos estrategicamente colocados obstruíam a imagem em várias seções, e câmeras foram viradas para longe das urnas em outras.

Houve pressões de outra ordem. Segundo disse à Folha a mesária Anastasia Dagaeva, muitas pessoas tiraram “selfies” com seus votos para provar aos seus chefes que tinham ido votar em Vladimir Putin. Em todo o país houve casos semelhantes. O relato bate com a convocação feita aos funcionários de um instituto de pesquisa relatado à reportagem por um professor que lá trabalha e pediu anonimato.

Dagaeva, uma jornalista de 30 anos que se voluntaria sempre para trabalhar em eleições, diz que o faz para coibir fraudes. É uma forma de combater a injustiça do sistema, afirma. A rede de Navalni e outras entidades, por sua vez, estão monitorando denúncias. A ONG Golos montou uma central online de monitoramento de fraudes, e computou 860 casos para investigação posterior, 190 deles em Moscou.

Navalni disse, em entrevista coletiva, que nunca se saberá se seu boicote deu ou não certo porque a abstenção foi combatida pelo governo com as irregularidades registradas país afora. Ele convocou o movimento porque foi barrado de concorrer contra Putin porque tem uma condenação judicial em um caso algo obscuro, que ele aponta ser armação política.

Seu time fará um relato especial sobre a Tchetchênia, que sob o jugo de Ramzan Kadirov, aliado de Putin, tornou-se um dos locais mais repressivos de toda a Rússia. Navalni enviou 53 monitores à república no Cáucaso, que historicamente tem mais de 90% de comparecimento às urnas.

Há 1.500 observadores internacionais no país, além de 140 mil russos credenciados a fazer o trabalho —100 mil deles a serviço de apoiadores de Putin. A OSCE (Organização para Segurança e Cooperação na Europa) tem um time de 219 monitores em várias regiões, e irá divulgar na segunda (19) seu balanço. A Folha circulou por quatro postos de votação do centro moscovita e não encontrou nenhum deles, mas sim apoiadores de Navalni.

“É uma fraude, mas claro que não podemos impedir ninguém de votar”, disse Guennadi, jovem de 18 anos que já havia participado de atos contra o governo no ano passado e envergava uma camiseta com o logo da campanha do boicote, em frente à seção 43, localizada numa escola do elegante bairro de Zamovskvorechie.

FEIRAS

O local abrigava uma tradição de eleições russas desde o tempo da União Soviética, quando o voto também não era obrigatório: uma feira de alimentos com desconto para atrair eleitores. Frutas e cerveja estavam 20% mais baratas do que no “produkti”, o mercadinho de esquina onipresente na Rússia, mais próximo. O mesmo ocorreu no posto de votação mais próximo do Kremlin, o 145, no bulevar Nikitski.

A segurança estava reforçada, com um detector de metais e um policial à porta da escola, mas dentro dela o trabalho era normal. Sem fila, eleitores apresentavam seu passaporte e recebiam a cédula, que é uma folha grande de papel com as opções listadas, marcavam seu voto dentro de uma cabine de pano e o depositavam na urna de plástico. Em algumas seções, era usada uma máquina que engole a folha de papel.

Em outros lugares, como na cidade de Novosibirsk, comida farta era oferecida a quem ia votar —em redes sociais, fotos de camponeses em torno de mesas com embutidos e pães viralizaram.

Sempre foi assim, mas o advento das mídias sociais trouxe imagens ainda mais curiosas de locais do interior do país. Sorteios de eletrônicos, shows com garotas de biquíni e assemelhados circularam, assim como as também tradicionais imagens de eleitores fantasiados. Um deles atestou o sucesso da retórica militarista do Kremlin e foi votar perto de São Petersburgo vestindo uma fantasia do foguete Sarmat, uma das novas armas nucleares que Putin anunciou com pompa em discurso na semana retrasada.

 
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