Descrição de chapéu Governo Trump

Cambridge Analytica usou estrangeiros nos EUA, dizem ex-funcionários

Regras americanas limitam o papel que estrangeiros podem ter nas campanhas eleitorais no país

Craig Timberg Tom Hamburger
Londres | Washington Post

A Cambridge Analytica designou dezenas de estrangeiros para oferecer serviços de estratégia e comunicação de campanha a candidatados republicanos em 2014, de acordo com três antigos empregados da consultoria de dados, embora um advogado tivesse alertado os executivos de que a empresa deveria cumprir as leis americanas que limitam envolvimento estrangeiro nas eleições do país.

O esforço foi concebido de maneira a apresentar a companhia, que acabava de ser inaugurada e cujo controlador, o SCL Group, se localiza em Londres, como uma "marca americana", capaz de atrair clientes no mundo da política dos Estados Unidos, de acordo com Christopher Wylie, antigo diretor de pesquisa da Cambridge Analytica.

Wylie, que denunciou atividades irregulares da empresa este mês, forneceu ao Washington Post documentos que descrevem um programa conduzido em diversos estados americanos para vencer campanhas para os republicanos, usando perfis psicológicos a fim de encaminhar mensagens personalizadas a eleitores, Os documentos incluem detalhes até agora não revelados sobre o programa, chamado "Projeto Ripon", em referência à cidade do Wisconsin na qual o Partido Republicano foi fundado, em 1854.

As normas eleitorais dos Estados Unidos determinam que estrangeiros não podem "participar direta ou indiretamente do processo decisório" em uma campanha política, embora estejam autorizados a desempenhar papéis menores.

Homens limpam vidros no prédio onde fica a sede da Cambridge Analytica em Londres; empresa usou estrangeiros na eleição americana
Homens limpam vidros no prédio onde fica a sede da Cambridge Analytica em Londres; empresa usou estrangeiros na eleição americana - Tolga Akmen - 24.mar.2018/AFP

Essas restrições foram explicadas em um memorando de 10 páginas preparado em julho de 2014 por um  advogado de Nova York, Laurence Levy, para os dirigentes da Cambridge Analytica, entre os quais a presidente da empresa, Rebekah Mercer, o vice-presidente Steve Bannon e o presidente-executivo Alexander Nix. O memorando informava que cidadãos estrangeiros podiam desempenhar papéis menores —como funcionários encarregados de trabalhar com dados,  por exemplo—, mas não estavam autorizados a se envolver em decisões de campanha significativas ou a oferecer análise ou assessoria estratégia em alto nível.

O pessoal da Cambridge Analytica e do SCL Group era em sua grande maioria estrangeiro —canadenses, britânicos e outros europeus— e pelo menos 20 desses empregados trabalharam em campanhas legislativas em diversos lugares dos Estados Unidos em 2014, disseram os três antigos funcionários da Cambridge Analytica.

Muitos desses empregados e prestadores de serviços participaram de decisões quanto a que eleitores buscar atingir com mensagens políticas, e sobre que mensagens encaminhar a eles, disseram os antigos funcionários da Cambridge Analytica. As tarefas deles abarcavam todas as responsabilidades em uma campanha eleitoral, entre as quais "administrar relações com a mídia", bem como arrecadar verbas de campanha, planejar eventos e oferecer "estratégia de comunicação" e "argumentação, discursos e preparação para debates", de acordo com um documento que alardeia o trabalho da empresa em 2014.

"O segredinho sujo é que não havia americanos trabalhando no projeto, [e a companhia] era de fato um agente estrangeiro trabalhando em uma eleição nos Estados Unidos", disse Wylie.

Dois outros antigos empregados da Cambridge Analytica, que falaram sob a condição de que seus nomes não fossem revelados porque temem ter violado as leis de campanha americanas em seu trabalho, disseram que preocupações sobre a legalidade do trabalho da Cambridge Analytica no Estados Unidos eram tema regular de conversa entre os empregados da empresa, especialmente depois da votação de 2014.

Os dois antigos empregados, que, como Wylie, foram entrevistados em Londres, disseram que os funcionários estavam preocupados por a empresa ter oferecido documentos de imigração possivelmente irregulares para apresentar às autoridades quando de sua estrada nos Estados Unidos. Os documentos afirmavam que eles não estavam lá para trabalhar, quando na verdade o propósito de sua estadia era assessorar campanhas.

"Sabíamos que nem tudo era correto, mas não nos preocupamos demais com isso", disse um dos antigos empregados da Cambridge Analytica, que passou diversos meses nos Estados Unidos trabalhando em campanhas republicanas. "Era como o oeste selvagem. Foi bem assim que a empresa se comportou em 2014".

Dirigentes da empresa não responderam a múltiplos pedidos de informações apresentados pelo Washington Post. Bannon, Mercer e Nix também não quiseram se manifestar

As afirmações dos antigos empregados representam a mais recente em uma série de complicações para a Cambridge Analytica, fundada em 2013 pela abastada família Mercer e por Bannon, estrategista republicano que era chairman executivo da Breitbart News e mais tarde se tornou um dos principais assessores do presidente Donald Trump.

As revelações dos antigos empregados se centram na campanha de 2014. Dois anos mais tarde, a Cambridge Analytica foi contratada para trabalhar na campanha presidencial do senador Ted Cruz, republicano do Texas, e mais tarde na campanha de Trump.

A perspectiva de uma nova investigação judicial sobre Bannon surge em um momento turbulento para o estrategista conservador. Ele deixou seu posto como assessor sênior do presidente em agosto e em janeiro deixou sua posição na Breitbart News, depois que citações ásperas sobre Trump e sua família, atribuídas a Bannon, surgiram em "Fogo e Fúria", livro de Michael Wolff sobre os primeiros meses do governo Trump. A família Mercer, que por muito tempo foi a benfeitora financeira de Bannon, também se afastou dele.

A Cambridge Analytica suspendeu Nix na semana passada depois de uma série de revelações sobre as práticas antiéticas da empresa, entre as quais um vídeo gravado clandestinamente que foi veiculado pelo Channel 4, um canal de TV britânico, no qual ele falava sobre o possível uso de suborno e de armadilhas sexuais para prejudicar adversários políticos dos clientes da empresa.

Para Nix e sua empresa, a controvérsia havia começado dias antes quando reportagens publicadas pelo jornal americano The New York Times e pelo britânico The Observer revelaram que a Cambridge Analytica havia recolhido dados sobre dezenas de milhões de perfis do Facebook, supostamente sob falsos pretextos, e que havia compartilhado esses dados de maneira igualmente indevida. Em 16 de março, o Facebook anunciou que havia suspendido a conta da "SCL/Cambridge Analytica", e as de duas pessoas envolvidas na coleta de dados, entre as quais Wylie.

A Cambridge Analytica, cujos escritórios foram revistados no final de semana pelas autoridades britânicas, vem negando repetidamente qualquer impropriedade, mas não respondeu a pedidos do Washington Post de comentários para esta reportagem.

Na semana passada, Alexander Tayler, presidente-executivo interino da companhia, expressou arrependimento quanto ao uso de dados do Facebook pela empresa. Ele tuitou que "como poderia testemunhar qualquer pessoa que conheça nosso pessoal e nosso trabalho, de forma alguma representamos a empresa politicamente motivada e antiética que alguns buscam retratar. Nossa equipe é um grupo diversificado, talentoso e vibrante de pessoas".

O Projeto Ripon foi descrito por Wylie e outros empregados da empresa como um esforço ambicioso da Cambridge Analytica para assessorar campanhas políticas americanas quanto ao uso de dados, para identificar "republicanos ocultos", Ripon também era o nome de uma ferramenta online de administração de campanha desenvolvida para esse fim e descrita em uma brochura produzida pela empresa em Londres, com o subtítulo "reconquistando a América".

Wylie disse que essa iniciativa se assemelhava a esforços anteriores do SCL Group para influenciar os resultados de eleições em benefício de candidatos de diversos outros países, entre os quais Quênia, Nigéria e Índia, muitas vezes por meio de companhias afiliadas geridas de Londres.

Documentos da empresa obidos pelo Washington Post mostram que o programa tinha 41 empregados e prestadores de serviços nos Estados Unidos, e que os gastos com ele entre abril e julho de 2014 foram de US$ 7,5 milhões (R$ 24,7 milhões).

A empresa iniciou uma busca agressiva de clientes políticos em 2014, fechando contratos com diversos candidatos republicanos, em um ano que foi um sucesso para o partido. Naquele ano, mostram documentos da Cambridge Analytica, ela assessorou um candidato à Câmara no Oregon, um candidato ao legislativo estadual no Colorado e, a serviço da direção nacional do Partido Republicano, a candidatura de Thom Tillis ao Senado pela Carolina do Norte.

Tillis disse que espera que todos os serviços prestados à sua campanha tenham sido legítimos, e que seria "profundamente perturbador" se sua campanha tivesse sido enganada por um prestador de serviços.

Dallas Woodhouse, diretor do Partido Republicano na Carolina do Norte, disse que o partido pagou US$ 150 mil (R$ 495 mil) à Cambridge Analytica em 2014 por seu trabalho de divulgação, em benefício de Tillis e outros candidatos republicanos, mas que não estava ciente de que trabalhadores estrangeiros estivessem envolvidos nesses serviços. Ele disse que o partido não toleraria comportamento antiético da parte de qualquer prestador de serviços.

"Nenhum trabalhador estrangeiro trabalhou para nós", disse Woodhouse.

A empresa, que afirma que os candidatos republicanos venceram a maioria das eleições nas quais ela trabalhou em 2014, também assessorou candidatos no Arkansas, New Hampshire e Carolina do Norte por conta de um comitê de ação política comandado por John Bolton, antigo embaixador dos Estados Unidos às Nações Unidas, apontada na semana passada para o posto de assessor de segurança nacional de Trump.

Garrett Marquis, porta-voz de Bolton, disse que Bolton, e não pessoas da Cambridge Analytica, tomava todas as decisões estratégicas quanto ao seu comitê de ação política. Marquis acrescentou que o contrato com a Cambridge Analytica estipulava que o uso de dados pela Cambridge Analytica "respeitaria as leis aplicáveis", que a organização de Bolton não trabalha com a empresa desde 2016, e que Bolton não estava ciente de qualquer suposta impropriedade por parte da Cambridge Analytica até que surgissem as recentes reportagens. O comitê já não emprega qualquer dado gerado pela empresa.

Wylie, que deixou a Cambridge Analytica no final de 2014 devido a uma preocupação crescente com as posições políticas da empresa e a liderança de Nix, disse em entrevistas ao Washington Post ter participado em 2014 de diversas conferências telefônicas nas quais questões estratégicas de campanha foram discutidas com Bannon e Nix, que é britânico.

Wylie também disse que essas conversas frequentemente incorporavam discussões sobre as questões legais mencionadas por Levy em seu memorando de julho de 2014, que Wylie trouxe a público recentemente. O memorando havia sido divulgado anteriormente pelo jornal britânico Guardian e pelo americano The New York Times.

Levy não respondeu a pedidos de comentários., A Cambridge Analytica havia informado ao The New York Times anteriormente que "os empregados que exerciam papéis estratégicos nos Estados Unidos eram cidadãos dos Estados Unidos ou tinham green cards", e que Nix "jamais teve papel estratégico ou operacional" em campanhas eleitorais nos Estados Unidos.

Wylie se recusou a comentar sobre se acreditava ter violado as leis dos Estados Unidos em seu trabalho para a Cambridge Analytica.

As restrições quanto ao trabalho de estrangeiros em campanhas eleitorais americanas são amplas, dizem advogados especializados em questões eleitorais, e a distinção crucial é se a pessoa está ou ou não envolvida em decisões sobre uma campanha.

Levy escreveu em seu memorando de 2014 que "cidadãos estrangeiros podem trabalhar em campanhas políticas nos Estados Unidos, mas não podem desempenhar papéis estratégicos, entre os quais oferecer orientação estratégica a candidatos, campanhas, partidos políticos ou comitês independentes que realizem dispêndios de campanha. Por outro lado, estrangeiros podem trabalhar como funcionários que recolhem e processam dados, mas a análise final dos dados em questão deve ser conduzida por cidadãos americanos e encaminhada por eles a qualquer cliente nos Estados Unidos".

Brett Kappel, advogado cuja especialidade é o financiamento de campanhas eleitorais, do escritório de advocacia Akerman LLP, disse que os relatos de Wylie e de outros antigos empregados da Cambridge Analytica são causa de preocupação em termos legais. "Se as afirmações de Wylie são verdade, o Departamento da Justiça americano deveria processar a Cambridge Analytica e seus dirigentes por violações deliberadas e conscientes da proibição a contribuições profissionais por estrangeiros".

Trevor Potter, advogado especializado em questões de financiamento de campanha que assessorou a campanha presidencial do senador John McCain em 2008, disse que "é permissível que campanhas contratem estrangeiros", desde que suas atividades de campanha estejam em plano inferior.

"Seria um problema para um comitê de ação política —​ou qualquer agente político nos Estados Unidos—​​ter estrangeiros envolvidos no comando de uma operação política, o que incluiria tomar decisões sobre estratégia, direcionamento de mensagens e direcionamento de gastos em nome da entidade política em questão", ele disse."Se estrangeiros estiveram envolvidos em decisões de primeira ordem em uma organização política, isso representa violação das leis federais".

Um relatório pós-eleitoral da Cambridge Analytica em 2014, descrevendo suas atividades em campanhas legislativas federais e estaduais, afirma que a empresa desempenhou papel chave na campanha do republicano Arthur Robinson por uma vaga como deputado federal pelo Oregon. O relatório também indica que a empresa respeitou os limites da lei nessa campanha. Robinson não foi eleito.

"Na campanha Art Robinson para o Congresso, a Cambridge Analytica SCL assumiu responsabilidades abrangentes e na prática administrou a campanha inteiramente, com assessoria estratégica canalizada por meio de cidadãos americanos na equipe de campanha da companhia", afirma o documento.

O plano, de acordo com o documento, era manter o foco em "reabilitar a imagem do Dr. Robinson junto aos eleitores mostrando-o como um homem de família simpático e cientista sério, e não como um 'cientista louco' de extrema direita e altamente instável, que é a maneira pela qual a oposição o havia caricaturado nas duas eleições precedentes".

Contatado pelo Washington Post, Robinson disse que sua campanha de 2014 contratou a empresa, e que ela prestou serviços úteis para a experiente equipe de campanha que ele empregava. Ele disse que conversou com Nix uma vez, e que não estava informado sobre as nacionalidades de outros empregados da empresa que tenha encontrado.

"A Cambridge [Analytica] foi muito útil", ele disse, afirmando que a equipe da empresa e a de sua campanha "se uniram e trabalharam juntas".

Antigos empregados da Cambridge Analytica disseram que havia poucos cidadãos americanos nas fileiras da empresa. Mas ela ainda assim trabalhava rotineiramente em campanhas americanas, desenvolvendo mensagens, criando materiais de campanha, como anúncios e vídeos, e ajudando os comandos das campanhas a decidir sobre o direcionamento dessas mensagens.

"A natureza do direcionamento tem influência fundamental na orientação de uma campanha, porque você está decidindo que mensagens vão para quem, e quando", disse Wylie. "Não há como administrar direcionamento de mensagens sem influenciar a orientação de uma campanha significativamente".

Questões sobre a legalidade das ações da Cambridge Analytica começaram a surgir logo depois da eleição de 2014, durante a qual candidatos republicanos —entre os quais os ajudados pela empresa— realizaram ganhos significativos.

Em uma videoconferência da qual participou Levy, o advogado chamou a atenção da empresa para as restrições ao trabalho de estrangeiros em campanhas eleitorais nos Estados Unidos, disse um antigo funcionário da Cambridge Analytica que participou da conferência e falou sob a condição de que seu nome não fosse mencionado. Para alguns empregados da empresa em seu escritório de Londres, essa foi a primeira indicação de que leis americanas podiam ter sido violadas, o que lhes causou inquietação em um momento que de outra forma seria festivo.

"A informação só chegou ao pessoal quando já era tarde demais", disse o antigo empregado da Cambridge Analytica.

Ele acrescentou que "a Cambridge Analytica não lidava apenas com dados. Também lidava com estratégia de direcionamento. Ajudava a decidir quanto às mensagens". Os empregados da companhia envolvidos na campanha "incluíam alguns poucos cidadãos americanos" e dezenas de estrangeiros.

Os antigos empregados da Cambridge Analytica não falaram sobre o que aconteceu em 2016, quando a empresa trabalhou para Cruz e Trump.

Dirigentes dessas duas campanhas presidenciais declararam no domingo que suas organizações cumpriram rigorosamente as restrições federais quanto à presença de estrangeiros em campanhas eleitorais americanas.

Catherine Frazier, porta-voz da equipe de campanha de Cruz, disse que os especialistas em dados de outros países "se reportavam aos seus chefes americanos, que por sua vez se reportavam ao nosso pessoal - a fim de garantir que eles não fizessem parte do processo decisório quanto à campanha".

Um representante da campanha de Trump, falando sob a condição de que seu nome não fosse mencionado porque não estava autorizado a falar com a imprensa, disse que a equipe da Cambridge Analytica era dirigida por um cidadão dos Estados Unidos, para garantir o cumprimento da lei.

Nix, o presidente-executivo da Cambridge Analytica, retratou seu papel como crucial para a vitória de Trump, ainda que outros participantes da campanha tenham expressado dúvidas a esse respeito.

Ele disse ao site de notícias tecnológicas TechCrunch em 2016 que a Cambridge Analytica, que de acordo com registros federais recebeu pelo menos US$ 6 milhões (R$ 19,8 milhões) em pagamentos da organização de campanha de Trump, teve papel chave em decisões de campanha sobre análise de dados, pesquisa, publicidade digital, comerciais de TV e arrecadação de doações. "Do dia para a noite, o [contrato] foi de apenas dados, originalmente, para tudo mais".

Nix fez afirmações semelhantes em um vídeo gravado secretamente e veiculado alguns dias atrás pelo Channel 4 no Reino Unido, afirmando que a empresa "cuidou de todas as pesquisas, todos os dados, todas as análises, todo o direcionamento, dirigimos toda a campanha digital, a campanha de televisão, e nossos dados deram forma a toda a estratégia".

Tradução de Paulo Migliacci

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