Como a Eslováquia reagiu ao assassinato de jornalista e expulsou o premiê

Indignação com morte de Jan Kuciak, que investigava o governo, levou à queda de Robert Fico

Griff Witte
Bratislava | Washington Post

Durante os dez anos que passou como primeiro-ministro da Eslováquia, Robert Fico seguiu em tudo o molde dos líderes autocratas tão em voga hoje em todo o mundo.

Ele destratou jornalistas, respondendo a perguntas difíceis com epítetos como “hiena” e “prostituta”. Usou refugiados muçulmanos e um financista judeu como bodes expiatórios, atribuindo a eles a culpa pelos problemas de seu país. Seu partido se aproximou de oligarcas eslovacos, apparatchiks russos e chefões mafiosos italianos, e ele próprio vivia num apartamento luxuoso no alto de uma colina com vista panorâmica do Danúbio.

Então aconteceu algo extraordinário: um repórter investigativo que estava rastreando as finanças de Fico foi assassinado e dezenas de milhares de pessoas nesse país antes apático se incomodaram o suficiente para sair às ruas em protesto. Em vez de se deixarem intimidar pelo crime, outros jornalistas investigaram mais fundo. Movimentos de oposição de base surgiram do nada. Freios constitucionais entraram em ação.

Pressionado por todos os lados, Robert Fico renunciou.

“Um mês atrás, eu não teria imaginado nada disso. Teria sido ingenuidade”, afirmou o estudante de direito Juraj Seliga, 27 anos, um dos organizadores dos protestos. “Fico era tão forte. Agora ele está enfraquecido.”

A revolução pacífica que transformou a política neste país de 5 milhões de habitantes forma um contraste surpreendente com tendências globais que parecem favorecer líderes dispostos a passar por cima de regras, normas e instituições. Da China à Rússia e à Turquia –e, diriam os críticos do presidente Trump, até mesmo nos Estados Unidos--, a corrente política se deslocou na direção do poder consolidado, das mensagens nacionalistas e da intolerância para com vozes discordantes.

Em poucas regiões essa tendência vem sendo mais aparente que no Leste Europeu. Países que três décadas atrás se libertaram dos grilhões do comunismo hoje se parecem cada vez mais com os Estados unipartidários do passado. O desvio para o iliberalismo e a autocracia se dá especialmente na Hungria e na Polônia.

Os eslovacos que se veem como parte do Ocidente democrático antes temiam que seu pequeno país, independente apenas desde sua separação da República Tcheca, em 1993, pudesse seguir esse exemplo. Os protestos do mês passado tiveram o objetivo, pelo menos em parte, de assegurar que isso não ocorra.

O primeiro-ministro Robert Fico ao anunciar sua renúncia na Eslováquia
O primeiro-ministro Robert Fico ao anunciar sua renúncia na Eslováquia - Martin Baumann - 15.mar.2018/Xinhua

“Não queremos acabar como a Hungria”, disse Seliga.

Como ele próprio admitiu, um mês apenas atrás Seliga vivia uma vida “maçante” como pós-graduando mergulhado em sua pesquisas.

Como muitos outros neste país, ele ficou profundamente chocado com o assassinato do jornalista investigativo Jan Kuciak, cujo corpo foi encontrado no dia 25 de fevereiro ao lado do de sua noiva, Martina Kusnirova. Ambos tinham 27 anos e foram baleados à queima-roupa em sua casa na capital.

Ninguém foi acusado dos crimes. A suspeita imediata foi que o trabalho de Kuciak teria sido o motivo.

Kuciak estava investigando uma teia complexa de negócios entre funcionários governamentais, empresários locais e a Máfia italiana. Boa parte de suas reportagens tratava de Robert Fico, que contratara como sua assistente pessoal uma antiga modelo de topless. A modelo tinha vínculos com um empresário italiano ligado ao crime organizado, conforme indicado em documentos judiciais.

Denúncias de corrupção foram recorrentes durante o governo de Fico, de 53 anos, mas nunca deram em nada. O assassinato do jornalista, porém, tocou um nervo.

Vigílias solenes atraíram milhares de pessoas, muitas delas chorando nas ruas, e então deram lugar a protestos em clima de revolta, com dezenas de milhares de pessoas pedindo a renúncia de Fico.

Seliga suspendeu seus estudos de pós-graduação e passou a organizar protestos. Ele e um punhado de outros jovens neófitos em política criaram um movimento nacional dinamizado pelo sentimento de ultraje.

“Temos a mesma idade que Jan e Martina”, ele disse. “Jan estava apenas fazendo seu trabalho, tentando mostrar o funcionamento real do partido governista. E foi assassinado por isso.”

No Aktuality.sk, o site de jornalismo para o qual Kuciak trabalhava, as reações à morte de um colega foram de horror, choque e medo. E, depois disso, de determinação em reagir.

“Foi inimaginável”, disse o editor chefe do site, Peter Bardy, falando do momento em que soube que seu repórter estava morto. “Nosso país é membro da União Europeia. Pensávamos que algo assim não poderia acontecer.”

A Redação do site fica ao lado do centro medieval de Bratislava. Uma equipe de 27 profissionais –26 desde o assassinato de Kuciak— se espalha por cubículos em um escritório em plano aberto. Um outdoor na rua diante da Redação mostra Kuciak e Kusnirova de perfil, com a legenda: “Não se mata a verdade”. Guardas armados estão postados à porta.

O cubículo de Kuciak está exatamente como o jornalista o deixou, com canecas manchadas de café espalhadas pela mesa, cabos para carregar aparelhos e um gráfico traçando ligações entre altas figuras do governo e figuras escusas do submundo.

Bardy disse que Kuciak possuía um dom incomum para “farejar” ligações e padrões em lugares onde outros talvez enxergassem apenas um fluxo de dados indecifrável.

“Eu dizia às pessoas que era como ‘The Matrix’”, disse Bardy.

O editor colocou uma equipe de dez jornalistas para levar adiante o trabalho que Kuciak estava fazendo. Eles estão trabalhando em colaboração com veículos de mídia eslovacos rivais, vários dos quais publicaram postumamente o último texto do jornalista –uma “bomba” investigativa sobre recursos da União Europeia desviados, a Máfia e figuras eslovacas em cargos seniores.

Bardy disse que até mesmo então o primeiro-ministro ridicularizou o trabalho do jornalista assassinado.

“Ele estava rindo do trabalho de Jan”, disse Bardy, que conversou com Fico dias após o assassinato. “Falou: ‘Mataram ele por isso? Não me diga.’”

O presidente da Eslováquia, Andrej Kiska
O presidente da Eslováquia, Andrej Kiska - David W. Cerny - 15.mar.2018/Reuters

Também em público Fico estava se recusando a reconhecer a ira e a rejeição genuínas do público. Ele insinuou que os protestos teriam sido organizados secretamente pelo investidor húngaro-americano George Soros, de 87 anos, e avisou que as manifestações poderiam ficar violentas. Os organizadores interpretaram suas palavras como ameaça.

O presidente eslovaco, Andrej Kiska, assistiu à reação de Fico com preocupação crescente, disse um assessor presidencial sênior, Rado Bato.

“A resposta do premiê estava fora de sintonia com a realidade, com o sentimento da sociedade, com o ambiente como um todo”, disse Bato, cujo chefe é rival de longa data de Fico, mas não está ligado à oposição política ou a qualquer outro partido. “Ninguém acreditava na existência de uma conspiração envolvendo George Soros. Esse tipo de tática não funciona numa situação em que o fator desencadeador é o assassinato de dois jovens.”

O presidente exerce poder limitado na Eslováquia. Como líder simbólico do país, ele comanda autoridade moral –e a usou para pressionar Fico, pedindo que ou fossem convocadas novas eleições ou houvesse uma mudança de liderança.

“Às vezes é preciso dar um basta”, disse Bato.

Fico, cujo domínio do poder nunca foi tão absoluto quanto o de outros líderes ditatoriais, como o húngaro Viktor Orban, renunciou em 15 de março. Ele o fez com um sorriso, dizendo a Kiska: “Não se preocupe, eu não vou desaparecer”.

Fico permanece na direção do partido governista, e o novo primeiro-ministro é seu antigo vice. Muitos duvidam de que o novo líder se desvie do rumo definido por Fico, que se tornou primeiro-ministro em 2006 e liderou o país por dez dos últimos 12 anos.

Acho que este governo não é capaz de produzir mudanças”, afirmou Grigorij Meseznikov, presidente do Instituto de Assuntos Públicos, de Bratislava.

Meseznikovque descreveu os protestos do mês passado como sendo maiores que as manifestações da Revolução de Veludo, de 1989, que levaram à queda do então governo comunista— disse que não se deve subestimar o efeito.

Para ele, a dinâmica de poder na Eslováquia mudou, sem dúvida alguma. Esse fato foi evidenciado na semana passada, quando o novo ministro do Interior decidiu submeter-se a uma sabatina pública de duas horas pela mídia em seu primeiro dia no novo cargo. Foi uma manifestação de humildade da parte de um governo que até agora se caracterizou pela arrogância e falta de transparência diante de críticas.

“Vocês têm o direito de me fazer perguntas difíceis”, admitiu o ministro, Tomas Drucker, enquanto ouvia uma pergunta crítica após outra de um jornalista investigativo sênior e o líder de uma organização de combate à corrupção.

O novo primeiro-ministro da Eslováquia, Peter Pellegrini
O novo primeiro-ministro da Eslováquia, Peter Pellegrini - Francois Lenoir -22.mar.2018/Reuters

No dia seguinte também se percebiam ares de mudança em Bratislava. Embora os organizadores tenham desmarcado os protestos de sexta-feira, que já haviam virado habituais, uma vigília silenciosa atraiu milhares de pessoas, muitas delas carregando cartazes.

“Nossa passividade nos está matando”, dizia um cartaz.

“Estou com raiva”, dizia outro, segurado por uma moça jovem e loira.

A professora de ioga Zuzana Hruzova, 35 anos, afirmou que até o mês passado nunca tinha dado atenção à política. “Mas o assassinato desses dois jovens realmente mexeu comigo”, disse ela, protegendo-se do frio de março com um cachecol cor-de-rosa. “Se há algo de sujo em nosso governo, precisa ser posto para fora.”

Hruzova disse que nem sequer se deu ao trabalho de votar na última vez que teve a oportunidade.

Na sexta-feira, quando um ativista lhe pediu para assinar uma petição pedindo a convocação de novas eleições, ela assinou sem hesitar.

Tradução de Clara Allain

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