Hospital libanês trata feridos da guerra síria

Centro da Cruz Vermelha conserta tratamento dado em unidades de campanha improvisadas

Patrícia Campos Mello
Trípoli

Quando o pedreiro Naim viu os soldados sírios se aproximando, pensou: “Não tenho como suborná-los e não quero passar meses na prisão”.

Saiu correndo para se esconder atrás de uma árvore e acabou pisando em uma das inúmeras minas que forram a fronteira entre o Líbano e a Síria. Na hora da explosão, não sentiu nada, só se assustou com o barulho. Mas quando olhou para baixo, seu pé estava preso só por uma nesga de carne ao calcanhar.

A guerra da Síria está prestes a entrar em seu oitavo ano. Além dos mais de 400 mil mortos, centenas de milhares de pessoas ficaram gravemente feridas. A maioria é atendida em hospitais improvisados no front, e com sorte sobrevive. Sequelas são comuns.

Os sírios Wael Hamze (à esq.) e Amer al-Absi (pernas amputadas) fazem fisioterapia no hospital que a Cruz Vermelha mantém em Trípoli (Líbano) - Lalo de Almeida/Folhapress

Alguns poucos conseguem chegar até o Centro de Treinamento de Trauma causado por Armas, especializado em feridos de guerra, que o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) montou na cidade de Trípoli, no Líbano.

Grande parte do trabalho ali é cuidar dos chamados “casos frios” —gente que recebeu os primeiros socorros em hospitais de campanha, no front sírio, mas que sofre as consequências da precariedade daquele atendimento.

A maioria dos médicos que estavam nas áreas conflagradas da Síria deixou o país. Sobraram alguns poucos profissionais, enfermeiros, e muita gente bem-intencionada, mas pouco treinada, para atender multidões de feridos.

As condições de higiene são calamitosas. Certos pacientes que chegaram ao centro do CICV tinham grama dentro dos ferimentos costurados, conta Mariateresa Cacciapuoti, chefe da subdelegação no norte do Líbano, país de 4 milhões que acolhe hoje 1,5 milhão de refugiados sírios e 500 mil palestinos.

Um dos erros mais comuns do atendimento no front é costurar os ferimentos imediatamente, aumentando o risco de infecção. Os médicos também abusam de antibióticos de amplo espectro, o que leva a infecções multirresistentes.

SEM ANESTESIA

Quando o sapateiro sírio Yasser Qulleib, 31, chegou ao centro do CICV, os médicos tiveram de reabrir a sutura feita em sua perna, remover todos os pinos e placas metálicas e iniciar um tratamento com antibióticos para tentar debelar uma infecção que quase lhe custou a perna.

Qulleib vivia em Ghouta oriental, subúrbio de Damasco que está cercado pelas tropas do ditador Bashar al-Assad há anos e é alvo constante de bombardeios. Por causa do bloqueio, ele e a família sobreviviam comendo sopa de folhas e os poucos vegetais que conseguiam plantar.

Em janeiro de 2015, o sapateiro sobreviveu a um bombardeio no mercado local que deixou 35 mortos. Atingido na perna, foi levado a um hospital improvisado, onde passou por cirurgia sem anestesia. Por meses, o ferimento não cicatrizava. Tentou-se fazer um enxerto de osso, sem sucesso.

Depois que sua casa foi destruída por mísseis, em 2016, Qulleib fugiu da Síria com a mulher e as duas filhas pequenas. Foi para um campo de refugiados no vale do Bekaa, no Líbano, de onde um enfermeiro do CICV o encaminhou ao centro de tratamento. Ali, ficaria internado por mais de um mês.

Em 2017, 500 pacientes passaram pelo hospital. Grande parte tem membros amputados e fica de 3 a 6 meses, entre cirurgias, reabilitação e atendimento psicológico para estresse pós-traumático.

Lá, a equipe do CICV já treinou 65 cirurgiões locais. “A cirurgia de guerra tem uma série de técnicas que facilitam muito a recuperação dos pacientes”, diz Joana Sá, enfermeira-chefe no centro, que trabalhou na República Democrática do Congo, no Paquistão e no Afeganistão.

Antes de amputar uma perna, por exemplo, é importante esticar os nervos o máximo possível para que as terminações nervosas fiquem mais longe do coto e da pele, e, consequentemente, haja menos dores, explica Sá. O coto precisa estar redondo para se aplicar a prótese, e a sutura cirúrgica precisa ser na lateral. Muitas vezes, são colocados pinos e placas metálicas sem a devida higiene, o que causa infecções graves.

Enfermeira troca curativo de paciente no centro médico, por onde passaram 500 em 2017 - Lalo de Almeida/Folhapress

NO FRONT

“No primeiro atendimento, no front, a prioridade é manter as pessoas vivas, seja quais forem as condições do local. Por isso os pacientes apresentam muitas complicações”, diz Sá.

Às vezes, a equipe tenta orientar por Skype pessoas que estão nos hospitais de campanha, dando instruções sobre procedimentos cirúrgicos. “O perigo é que, algumas vezes, podem rastrear o sinal e bombardear os locais.”

Outra preocupação é a chamada dor do membro fantasma. A maioria das pessoas que têm membros amputados continua a sentir dores no braço ou perna. As terminações nervosas no local da amputação enviam mensagens ao cérebro que o fazem acreditar que o membro ainda existe.

O pedreiro sírio Naim pensou em simplesmente esperar e morrer no local onde tinha pisado em uma mina, na fronteira entre Síria e Líbano. Mas algo o fez se arrastar pelos cotovelos e joelhos até a beira da estrada. Parou, acendeu um cigarro, emendou em outro, e ergueu a luzinha do isqueiro, na esperança de ser visto na escuridão de 21h.

Foi encontrado por um soldado libanês, levado para um hospital no país deste, e depois operado no estabelecimento da Cruz Vermelha, onde teve sua perna amputada do joelho para baixo. Acaba de colocar uma prótese.

“Os médicos insistem que eu preciso parar de fumar, dizem que a recuperação vai ser mais fácil, mas não posso. Se não tivesse acendido um cigarro, estaria morto agora”, brinca.

Os jornalistas viajaram a convite do Comitê Internacional da Cruz Vermelha.

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