Descrição de chapéu The New York Times

Merkel sofre pressão para mudar lei de aborto alemã, que remonta ao nazismo

Regra proíbe médico de divulgar a prática, embora ela seja permitida nas primeiras 12 semanas

Melissa Eddy
Berlim | The New York Times

Ela era uma ginecologista obscura numa cidade central alemã que nunca teve a intenção de alimentar uma discussão que está provocando uma divisão no novo governo da chanceler Angela Merkel.

Mas, ameaçada com uma multa devido a uma lei da era nazista por ter publicado informações sobre aborto no site de seu consultório de ginecologia, Kristina Hänel disse que não teve outra escolha senão chamar a atenção pública para uma proibição que considera “superada e desnecessária”.

A lei em questão, o parágrafo 219 do código penal alemão, determina que a divulgação pública por médicos do fato de que realizam abortos –apesar de o aborto ser permitido nas 12 primeiras semanas de gravidez—é crime. A proibição de divulgação foi em grande medida ignorada durante décadas. Muitos ginecologistas que incluíam o aborto entre os serviços que oferecem a potenciais pacientes disseram que nem sequer tinham consciência da proibição até serem notificados por um promotor que uma ação legal tinha sido aberta contra eles.

Agora, semanas apenas depois de iniciado o quarto mandato de Angela Merkel, a questão se tornou um desafio para a primeira mulher a ser chanceler da Alemanha. Em meio a uma discussão crescente, esse assunto está colocando à prova a capacidade dela de criar um entendimento entre o bloco conservador de seu próprio partido, a União Democrata-Cristã (CDU), e as forças mais liberais presentes em seu aliado no governo, o Partido Social-Democrata (SPD).

A nova ministra da Justiça, Katarina Barley, terá agora que propor uma lei que possa conciliar as diferenças. Ela é membro do SPD, que em dezembro concordou com uma proposta de rescindir a lei. Mas o partido retirou a proposta horas antes de Merkel ser empossada, em 14 de março, depois de a chanceler ter prometido a seus parceiros que apoiaria uma solução conciliatória.

A chanceler alemã Angela Merkel tenta negociar uma solução dentro do governo para a questão do aborto
A chanceler alemã Angela Merkel tenta negociar uma solução dentro do governo para a questão do aborto - Tobias Schwarz - 14.mar.2018/AFP

“Estou exigindo que a chanceler cumpra o que prometeu”, disse Barley ao semanário Die Zeit. Ela já havia indicado antes uma solução possível: em vez de revogar a lei, mudar seu texto de modo que fazer publicidade do serviço de aborto continue a ser ilegal, mas que os médicos sejam autorizados a dar informações factuais sobre o procedimento.

“Os médicos precisam ter certeza legal”, escreveu Barley no Twitter. “As mulheres afetadas precisam de apoio em uma situação de crise pessoal.”

Mas forças conservadoras dentro do partido de Merkel parecem estar determinadas a manter a discussão focada sobre a questão moral do aborto. No dia 18 de março o novo ministro da Saúde, Jens Spahn, acusou os setores que querem revogar a lei de estar mais preocupados em proteger a vida de animais que a de humanos que ainda não nasceram.

Hänel, a ginecologista, considera esses argumentos semelhantes aos promovidos por ativistas que vêm registrando queixas criminais contra médicos que realizam abortos. Segundo as estatísticas mais recentes divulgadas pela Polícia Criminal Federal, em 2015 foram registradas queixas contra 35 médicos; no ano anterior, haviam sido 27.

Nem todas as queixas levaram a acusações criminais formais, e menos ainda resultaram em condenações, mas Hänel e outros médicos enxergam uma tendência que, alegam, visa impedi-los de oferecer um procedimento médico legalmente autorizado.

“Não acredito que nos dias de hoje a linguagem e mentalidade do tempo em que o aborto era ilegal continue a exercer um papel em um país que de outro modo é visto com respeito pelo resto do mundo”, escreveu Hänel em 19 de março, em carta aberta a Merkel. “Estou envergonhada e espero que possamos resolver este problema.”

Não é a primeira vez que os alemães discordam em relação ao aborto. O procedimento era ilegal na Alemanha ocidental até a década de 1970, quando mulheres saíram às ruas para reivindicar o direito de decidir o que acontecia com seu corpo. Em 1974 foi aprovada uma lei autorizando o aborto no primeiro trimestre da gravidez, mas a decisão foi revogada no ano seguinte pelo tribunal de mais alta instância do país.

Na década de 1990, depois de a Alemanha Oriental –onde o aborto era permitido nas primeiras 12 semanas de gravidez— ter sido absorvida pela Ocidental, chegou-se a uma solução pela qual era preciso permissão de um médico para autorizar um aborto, e essa solução chegou ao acordo legal existente hoje. Sob esse acordo, o aborto é crime, mas não será objeto de ação judicial nas primeiras 12 semanas se a mulher receber orientação médica e psicológica e aguardar três dias antes de realizar o procedimento.

Na vizinha Áustria, o ginecologista Christian Fiala anuncia há anos que sua clínica realiza abortos. “Gravidez indesejada?” diz um outdoor na estação University do metrô de Viena. O anúncio inclui o nome e telefone de sua clínica. Dez anos atrás Fiala começou a reunir nomes de médicos alemães que realizam abortos e a publicá-los em seu site na internet, que é sediado na Áustria, logo não é sujeito às restrições alemãs.

“Dispor de informações é absolutamente essencial. As mulheres que engravidam inesperadamente precisam de informações com urgência”, disse Fiala. “Isto não tem nada a ver com publicidade que supostamente facilitaria para uma mulher fazer um aborto apenas porque viu um outdoor em algum lugar. Essa ideia é completamente absurda e bastante sexista.”

A Holanda exige cinco dias de espera antes de um aborto ser realizado nas primeiras 12 semanas de gravidez. Na Bélgica, o período de espera é seis dias. Na vizinha França, uma mulher que queira fazer um aborto precisa passar primeiro por duas consultas com médico ou parteira. Diferentemente da Alemanha, porém, nesses países essas informações estão amplamente disponíveis.

“A Alemanha é o único país da Europa onde os médicos são proibidos de oferecer informações sobre abortos”, disse Hänel.

Em novembro um tribunal administrativo considerou Hänel culpada de infringir a lei. Isso porque o site dela na internet permite que potenciais pacientes solicitem e recebam um folheto de duas páginas que detalha as exigências legais, as opções de anestesia e os potenciais riscos do procedimento.

Em vez de tirar a informação de seu site ou pagar a multa de 6.000 euros (cerca de R$ 24 mil), Hänel contestou a decisão e promete levar a questão ao mais alto tribunal do país, se for preciso. Para conscientizar a população sobre a questão, ela lançou uma petição reivindicando “o direito de informação sobre o aborto”. Observou que a lei foi criada pelo Partido Nazista na década de 1930 com a finalidade de criminalizar médicos judeus.

O SPD, de centro-esquerda, adotou a bandeira imediatamente. Em fevereiro o partido insistiu que “médicos devem poder informar as mulheres sobre a interrupção da gravidez”.

Mas isso foi antes de ficar claro que os membros do partido aprovariam seu ingresso em mais um governo sob a liderança de Merkel. E foi antes, também, de membros chaves da conservadora CDU de Merkel deixarem claro que não apoiariam quaisquer mudanças que possam ser vistas como uma flexibilização da lei do aborto.

Horas antes do voto de 14 de março no Parlamento que aprovou o novo governo, Merkel apareceu ao lado do líder parlamentar do SPD em uma reunião do grupo de centro-esquerda. Pediu aos sociais democratas que rescindissem seu projeto de revogação da lei do aborto, prometendo em vez disso procurar uma solução de meio-termo em seu novo governo.

O partido de viés esquerdista concordou, com isso suscitando o repúdio dos partidários e mulheres que haviam participado de protestos pedindo a revogação da lei.

“Inacreditável!” escreveu Lisa Paus, deputada do Partido Verde que é a favor dos direitos de aborto. “Um indício fatal para as mulheres”, escreveu outra deputada Verde, Ulle Schauws. Ela observou que, se os social-democratas se dispusessem a romper com o partido de Merkel e unir-se ao Partido Verde e ao Partido Democrático Liberal, teriam votos suficientes para mudar a lei.

Na semana passada o líder da ala jovem do SPD, Kevin Kühnert, pediu que os deputados sejam autorizados a votar sobre a revogação da lei conforme sua consciência, e não segundo uma linha partidária acordada. Foi assim que a Alemanha aprovou rapidamente o casamento homossexual, no ano passado, após anos de tentativas fracassadas.

“A maioria da população é favor de uma mudança na lei”, disse Hänel. “Mas aqueles que se opõem a isso falam muito alto.”

Tradução de Clara Allain

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