Descrição de chapéu estados unidos

Na guerra, racismo impera, diz jornalista que revelou massacre no Vietnã

Seymour Hersh, que mostrou massacre de My Lai, lembra conflito em que a 'América perdeu sua alma'

O jornalista Seymour Hersh, que expôs a 'operação-abafa' dos EUA para esconder o massacre de My Lai, no Vietnã
O jornalista Seymour Hersh, que expôs a 'operação-abafa' dos EUA para esconder o massacre de My Lai, no Vietnã - Instituto para Estudos Públicos/Divulgação
Silas Martí
Nova York

Há exatos 50 anos, na manhã de 16 de março de 1968, um batalhão de cem soldados americanos abriu fogo contra civis no vilarejo de My Lai, num dos episódios mais sangrentos da Guerra do Vietnã.

Quinhentas e quatro pessoas, a maioria mulheres e crianças, perderam a vida ali.

No ano seguinte, o jornalista Seymour Hersh, 80, revelou como o Exército americano montara uma operação-abafa para disfarçar o embate como uma vitória contra soldados inimigos que nem estavam na região atacada, jogando a opinião pública contra o conflito que então já se tornara o mais longo envolvendo os Estados Unidos.

Ex-repórter do jornal The New York Times e da revista The New Yorker, além de autor de uma série de livros sobre o Vietnã, Hersh mostrou com sua investigação que, na contabilidade da guerra, importava só o número de corpos no fim do dia, e não se eram de vietcongues ou de civis, expondo a lógica macabra que orientava o conflito.

Em entrevista à Folha, Hersh descreve o massacre de My Lai como o "momento em que a América perdeu sua alma" e reflete sobre como o racismo aflora em momentos de guerra, em especial no conflito que revelou que nem sempre o poderio militar dos EUA superava o do inimigo.

 

Folha - Como começou sua cobertura da Guerra do Vietnã?

Seymour Hersh - Demorei para entender o que estava acontecendo no Vietnã, como muitos dos americanos. Era um jornalista free-lancer cobrindo o Pentágono em Washington e, naquela época, tínhamos acesso à sala de jantar dos generais. Foi ali, falando com eles, que percebi que a guerra era um inferno, um massacre absoluto.

Estavam usando armas químicas, todo tipo de coisa com um impacto terrível sobre os civis. Os EUA usaram helicópteros para jogar bombas, o que agora acusam a Síria de fazer. Era uma forma de atingir alvos com precisão. Fizemos isso durante sete anos.

Então, passei a frequentar as universidades para entrevistar estudiosos da guerra. E muitos soldados estavam voltando e falando sobre as coisas horríveis que tinham visto. Vi que o Exército estava cheio de pessoas admiráveis, que não gostavam de nada do que estava ocorrendo por lá.

O massacre de My Lai foi um ponto de inflexão na guerra?

Foi um divisor de águas. Outros massacres já tinham ocorrido, mas esse mudou a opinião pública. O presidente da época, Richard Nixon, tinha vencido a eleição daquele ano com a promessa de ganhar e encerrar a guerra, mas não estava conseguindo.

Tinha conquistado a América rural, a classe trabalhadora, os sulistas e os religiosos, os mesmos grupos que apoiaram Donald Trump, mas My Lai comprometeu sua credibilidade nos palanques.

De que maneira a violência desmedida do conflito no Vietnã espelha o culto atual às armas nos Estados Unidos?

Não acredito que exista uma ligação entre a violência atual, como o caso do atirador da Flórida, com a Guerra do Vietnã, mas o amor da América pelas armas transcende tudo isso. E há muita propaganda dificultando o entendimento dessas coisas.

O ponto é que aqueles eram jovens brancos de classe média sendo mandados para o Vietnã; de repente, a violência e os estupros se tornaram correntes. Eles matavam bebês com a ponta de suas baionetas. Como puderam chegar ao ponto de massacrar pessoas sem nem olhar para trás? O que me fascina é esse processo todo de embrutecimento.

O que estava por trás disso?

Nunca entendi muito bem isso, mas sei que, a partir de um determinado momento, eles passavam a ver a vida de um vietnamita como menos importante do que uma vida americana. Uma vida vietnamita já não significava nada.

Os generais ensinavam a ser violentos contra os soldados inimigos, mas depois eles aprenderam a ignorar também os estupros eventuais e toda a violência contra os civis. O racismo nos domina com facilidade na guerra.

Mas acredita que todo o trauma provocado por My Lai mudou a cultura militar do país?

Talvez o caso tenha despertado uma preocupação na época, quando o mundo ainda parecia estar estarrecido, mas não houve nada que indicasse uma mudança séria.

O general que comandou o ataque a My Lai foi apontado logo depois chefe da academia militar de West Point. Ele ganhou o posto mais cobiçado de todo o Exército do país. Então, o impacto disso tudo durou no máximo até 1970.

E teríamos depois a tortura e todo o abuso sexual na prisão de Abu Ghraib, no Iraque. A diferença no Vietnã foi que, pela primeira vez, os americanos viram que não podiam lutar melhor que um inimigo.

Isso causou danos enormes, até porque nunca tínhamos vistos corpos de soldados americanos derrotados. O que houve depois de tudo foi pelo menos um entendimento melhor sobre guerras.

Mas My Lai ainda tem dimensão histórica incontornável.

Foi uma exceção em termos numéricos, mais de 500 mortos, mesmo que os números da época não tenham sido esses. De todo modo, isso foi visto como a pior tragédia do mundo. Foi quando a América perdeu sua alma.

Mas guerras são processos terríveis, com matanças irrefreáveis dos dois lados. Nesse caso, ainda estávamos lutando num país sobre o qual não sabíamos nada. Então, havia um descuido ainda maior com a dificuldade de diferenciar os combatentes dos civis.

Isso era agravado pelo fato de os comandantes entenderem o número de corpos contabilizados como sinal de progresso rumo à vitória. O que ocorreu foi estarrecedor.

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