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Donald Trump estados unidos

Previsível, militarismo de Putin assusta Ocidente e agrada seu eleitorado

Presidente pode ter exagerado, mas EUA também deram razões para a agressividade

Igor Gielow
São Paulo

Agressivamente belicista, Vladimir Putin impressionou o mundo com o tom utilizado durante seu discurso de Estado da União nesta quinta (1º) em Moscou. Não deveria, dado que sua fala é consequência lógica da evolução da relação entre Rússia e o Ocidente desde o fim da Guerra Fria.

O presidente russo, Vladimir Putin, faz seu discurso sobre o Estado da União em Moscou
O presidente russo, Vladimir Putin, faz seu discurso sobre o Estado da União em Moscou - Evgeni Sinitsin/Xinhua

Primeiro, aos descontos. Putin falou ao país, como faz todo ano, mas também moldou o evento como seu primeiro e definitivo discurso de campanha eleitoral. No dia 18, ele deverá ser reeleito para o quarto termo como presidente —contando seus dois períodos como premiê, está no poder de forma ininterrupta desde agosto de 1999.

Assim, as cerca de duas horas de fala foram em boa parte desenhadas para o público interno. Por mais de uma hora, Putin prometeu dobrar a renda per capita russa até o fim de seu provável mandato de seis anos e cortar pela metade o contingente de 20 milhões de cidadãos abaixo da linha da pobreza. O dinheiro para isso é problema para depois: campanha é campanha em qualquer lugar.

Mas foi a parte final do discurso que levantou sobrancelhas mundo afora. De forma muito pouco usual, Putin desfilou o que seria uma série de novas armas estratégicas —aquelas que visam ganhar ou evitar uma guerra, obviamente contra a única potência que rivaliza com Moscou, os Estados Unidos. Não é todo dia que alguém com 1.710 armas nucleares prontas para uso apresenta animações gráficas sugerindo o bombardeamento do seu adversário.

Analistas militares irão debater o quão há de imaginação na descrição de seu novo armamento, inigualável segundo o presidente. Mas há certezas: o míssil intercontinental Sarmat é uma realidade, o chamado torpedo do juízo final foi admitido como uma ameaça pelos EUA e há anos os russos falam sobre desenvolver foguetes hipersônicos manobráveis.

Noves fora exageros, está claro que a Rússia exercita seus músculos bélicos em um novo nível, após uma modernização impulsionada por Putin a partir de 2008. A intervenção que fez na guerra civil síria em 2015, mesmo que limitada, foi eficaz e proporcionou um misto de campo de provas e "showroom" para sua máquina militar.

O que chamou menos atenção na mídia ocidental, talvez por ser uma verdade inconveniente, foi a parte em que Putin apresenta a razão para sua agressividade: geopolítica. Após a Guerra Fria, a Rússia foi deixada alquebrada enquanto a Otan, aliança militar liderada pelos americanos, expandiu-se sobre suas antigas fronteiras soviéticas —a joia da coroa do movimento foi a integração dos Estados Bálticos em 2004.

Já em 1997 um dos decanos da diplomacia americana, George Kennan, dizia que o movimento iria empurrar a Rússia para longe da democracia e torná-la agressiva ao Ocidente. Acertou em cheio. As guerras na Geórgia (2008) e na Ucrânia (2014) foram pontos de inflexão, pois estabeleceram o limite para a expansão. "Vocês falharam em conter a Rússia", bradou Putin no discurso.

Mas outras frentes seguiram abertas. Quando os EUA deixaram o tratado que limitava sistemas de defesa antimísseis, em 2002, os sinais de alerta soaram em Moscou. A instalação de bases para esse fim na Polônia e na Romênia sacramentou a desconfiança de Putin, que como lembrou no discurso já havia alertado sobre a necessidade de desenvolver novas armas em 2004.

Por fim, há Donald  Trump. No começo deste ano, o atabalhoado presidente americano lançou uma agressiva revisão de sua política nuclear. Advogando tentar evitar a guerra, Trump  na prática aderiu à doutrina militar russa que facilita a possibilidade de um confronto atômico ao admitir o uso da bomba para retaliar um ataque convencional. Também pediu a criação de armas que, teoricamente, são mais empregáveis do que as destruidoras ogivas atuais.

É possível argumentar que a escalada poderia ter sido evitada pelos dois lados, e que há uma dose de hipérbole nos fantasmas que Moscou vê. Também é preciso ponderar sobre a necessidade de Putin parecer mais ameaçador do que pode ser, tanto para os eleitores que lhe dão mais de 80% de aprovação quanto no amedrontado Ocidente.

Mas é bom ter em mente que a Rússia é uma potência em declínio, o oposto da China. Por isso mesmo, lembra o papa da geopolítica George Friedman, pode acabar sendo mais perigosa em sua assertividade. O fato é que o famoso Boletim dos Cientistas Atômicos parece ter acertado ao colocar os ponteiros do Relógio do Juízo Final mais perto da meia-noite este ano.

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