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A perturbadora luta contra as notícias falsas no Sudeste Asiático

Medidas aprovadas na região contra 'fake news' podem acabar minando a liberdade de imprensa

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Oren Samet
World Politics Review

Em 3 de abril, a Malásia se tornou o primeiro país do mundo a aprovar legislação específica que criminaliza a disseminação de notícias falsas, ou "fake news" em inglês. A nova lei inclui penas de até seis anos de prisão e multas de até 500 mil ringgit malasianos —cerca de US$ 128 mil, ou R$ 448 mil— para qualquer pessoa que "criar, oferecer, publicar, imprimir, distribuir, circular ou disseminar com más intenções qualquer notícia falsa".

A medida ocorreu dias antes de o primeiro-ministro Najib Razak dissolver o Parlamento, abrindo caminho para eleições gerais, agora marcadas para 9 de maio. A eleição será um teste chave para Najib, que foi perseguido por um enorme escândalo de corrupção envolvendo um fundo de investimentos estatal que ele dirigia, o 1Malaysia Development Berhad, ou 1MDB —do qual US$ 700 milhões (R$ 2,4 bilhões) supostamente acabaram em contas bancárias pessoais do primeiro-ministro.

Os críticos atacaram a nova lei como uma tentativa de abafar o escândalo do 1MDB e reforçar as perspectivas eleitorais do partido no poder. Eles também apontam que a lei poderia ter consequências em longo prazo na Malásia, dotando futuros governos de uma nova "arma política" para processar os críticos nos próximos anos.

Propaganda contra a disseminação de notícias falsas em estação de trem na Malásia
Propaganda contra a disseminação de notícias falsas em estação de trem na Malásia - Mohd Rasfan - 26.mar.2018/AFP

Essa cruzada contra as "fake news" não se limita à Malásia. Outros governos do Sudeste Asiático criaram medidas semelhantes, com implicações perturbadoras.

No Camboja, as autoridades também discutiram uma lei para combater as "fake news", em meio a uma repressão à mídia e à oposição no período que antecede as eleições nacionais marcadas para julho.

Um projeto semelhante foi igualmente apresentado nas Filipinas no ano passado. Em Cingapura, oito dias de audiências parlamentares em março testaram a questão de como abordar "falsidades deliberadas online", e os legisladores pretendem considerar a possibilidade de uma lei quando o Parlamento retomar as atividades em maio.

Essas propostas estão ostensivamente respondendo a problemas reais. Com a rápida expansão das redes sociais em todo o Sudeste Asiático, boatos e invenções maliciosas se espalharam em índices alarmantes em alguns países, com importantes consequências políticas e sociais.

Um chamado sindicato de notícias falsas na Indonésia, conhecido como Saracen, fez um negócio de bombear histórias falsas visando figuras políticas que desdenharam as tensões sectárias existentes no país.

O Saracen foi vasculhado em agosto de 2017, mas antes teve um papel na queda do ex-governador de Jacarta, Basuki Tjahaja Purnama, popularmente conhecido como Ahok, que perdeu a reeleição em abril passado e foi mais tarde preso por blasfêmia depois de ser visado por adversários políticos com base em sua origem nas minorias chinesa e cristã.

Em Mianmar, o Facebook foi um local para a disseminação de rumores maliciosos visando a minoria muçulmana rohingya, que foi expulsa em massa do país por uma campanha militar condenada internacionalmente como limpeza étnica. Embora a culpa do Facebook nesse desastre humanitário cada vez mais profundo tenha sido exagerada, o discurso de ódio e falsas histórias contribuíram para um ambiente tóxico para os muçulmanos em Mianmar, mais amplamente, e para a intensificação das tensões étnicas e religiosas.

Essa corrida para regulamentar as "fake news" em toda a região, porém, não parece destinada genuinamente a abordar esse tipo de preocupação. Em vez disso, segundo os contextos em que estão sendo propostas, as leis parecem ter o fim de fornecer aos governos ferramentas adicionais para reprimir notícias e formas de expressão que eles desaprovam.

Desde que a expressão "fake news" foi transformada em arma por Donald Trump, depois de sua vitória na eleição, líderes do Sudeste Asiático aproveitaram dicas do presidente americano, utilizando o termo para atacar reportagens que criticam suas políticas. Essa retórica é especialmente preocupante em um ambiente regional onde a liberdade de imprensa sofreu sérios reveses recentemente.

Um problema chave na lei malasiana, salientado por grupos de direitos humanos, é que ela é extremamente vaga, definindo "fake news" como "qualquer notícia, informação, dado e relato que seja todo ou parcialmente falso", de qualquer forma "capaz de sugerir palavras ou ideias". Tal linguagem poderia ser usada para envolver organizações noticiosas legítimas que cometam erros de reportagem rotineiros. Também dá ao governo o poder de decidir o que constitui informação falsa.

Nos últimos anos, o governo malasiano usou leis igualmente vagas, como a lei de sedição, para deter e prender seus críticos, por isso há motivos para preocupações. Além disso, antes da aprovação da lei, o vice-ministro de Comunicações e Multimídia da Malásia disse que qualquer informação relacionada ao escândalo do 1MDB que não fosse verificada pelo governo seria considerada "fake news" sob a nova lei, indicando ainda mais suas possíveis intenções.

No Camboja, os tribunais habitualmente abusam da difamação, incitação e outros estatutos para perseguir adversários políticos. E não há sinal de que uma nova lei contra as notícias falsas seria tratada de forma diferente. As autoridades também usaram manobras regulatórias para fechar canais de mídia independentes nos últimos meses, enquanto canais alinhados ao governo divulgam seus próprios boatos sobre um complô apoiado pelos EUA para derrubar o regime do primeiro-ministro Hun Sen, que o usou como pretexto para dissolver o principal partido de oposição em novembro passado e se tornar de fato um Estado monopartidário.

Até em Cingapura, que se orgulha do Estado de direito embora não seja uma democracia, há suspeitas sobre a intenção por trás da iniciativa a favor de nova regulamentação da mídia. Grupos de direita acusaram o governo de usar leis extremamente amplas para reprimir a livre expressão.

A Human Rights Watch e a Repórteres Sem Fronteiras recusaram convites para depor nas recentes audiências parlamentares sobre "fake news", afirmando que eram um "evento de mídia" destinado a justificar opiniões preconcebidas, e não um esforço sincero de consulta aos interessados. Várias testemunhas que participaram mais tarde se queixaram —um tanto ironicamente— de que seu depoimento foi mal representado na súmula pública oficial.

Críticas semelhantes foram levantadas contra a proposta de lei de notícias falsas nas Filipinas, que afinal não foi aprovada, em parte por preocupações sobre seu impacto na livre expressão. Críticas do governo sobre uma recente tentativa do Facebook de moderar melhor as notícias sobre as Filipinas que são compartilhadas em sua plataforma revelaram ainda mais a natureza frágil das tentativas públicas de definir a verdade.

O Facebook era associado ao Rappler, um canal de notícias online que apresentou forte reportagem crítica ao governo do presidente Rodrigo Duterte e se tornou alvo de fechamento pelo governo.

Plataformas como Facebook e Twitter redefiniram a paisagem da mídia no Sudeste Asiático, e há questões legítimas a se enfrentar sobre suas implicações sociais mais amplas. Mas a abordagem adotada pela Malásia e sendo considerada por governos vizinhos cria mais problemas do que resolve, ameaçando a pouca liberdade de imprensa que resta e minando a tese de uma regulamentação mais ampla.

Oren Samet é um pesquisador e analista político dedicado a questões de democracia e direitos humanos no Sudeste Asiático; tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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