Aos 12 anos, menina síria ajuda a mãe a entender o português

Número de alunos estrangeiros na educação básica mais que dobrou em dez anos

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São Paulo

A síria Zobaida Al Hariri, 12, veio com a família para o Brasil há dois anos e estuda numa escola estadual no Brás, com 60% de alunos estrangeiros
A síria Zobaida Al Hariri, 12, veio com a família para o Brasil há dois anos e estuda numa escola estadual no Brás, com 60% de alunos estrangeiros - Bruno Santos/Folhapress

Zobaida Al Hariri, 12, deixou a Síria com seus pais e seus dois irmãos quando tinha cerca de 8 anos. Passou um ano no Egito, outro ano em Santa Catarina e acabou em São Paulo, onde se sente melhor por causa da grande quantidade de árabes.

Ela representa os 73 mil alunos estrangeiros que estudam na educação básica do Brasil. Apesar de os imigrantes corresponderem só a 0,15% do total de crianças nas escolas, esse número mais do que dobrou nos últimos dez anos.

Zobaida frequenta o colégio estadual Eduardo Prado, no Brás, onde 55% das crianças são de fora. Todos os seus amigos, porém, são brasileiros. Foi assim que ela aprendeu a falar o português. Hoje, ela ajuda seus pais com a língua e a cultura no dia a dia, como é comum entre filhos de imigrantes.

"O aluno pode ser a ponte entre um grupo de migrantes e a sociedade que os recebe", diz Tatiana Chang Waldman, gestora do Núcleo de Pesquisa do Museu da Imigração. "Reconhecer a necessidade de construir uma estrutura adequada para eles, em que suas particularidades sejam reconhecidas, é um tema que o Brasil deve refletir e trabalhar com mais atenção."

Abaixo, Zobaida conta suas impressões sobre o Brasil e fala sobre o que deixou na Síria, onde a guerra já deixou mais de 400 mil mortos e 4 milhões de refugiados desde 2011.

 

Vim para o Brasil faz dois anos, porque na minha cidade [Damasco] tem guerra. Primeiro eu fui para o Egito e morei dois anos, mas meu pai não achou trabalho e veio para o Brasil.

Aí vim com a minha mãe e meus irmãos. Um tem 16 anos e o outro, 8. Meus primos ficaram na Síria, a família da minha mãe e a mãe do meu pai também.

Quando começou a guerra eu tinha cinco anos. Eu saí da Síria quando tinha oito ou nove, então eu não lembro muitas coisas. Não lembro quando meus pais falaram que a gente se mudaria, mas eu fiquei, tipo assim, triste, porque eu sentia falta dos meus amigos, meus primos.

Eu acho a guerra muito triste e muito ruim. E eu acho que meu pai veio para o Brasil porque não tem nenhuma cidade árabe que deixa os sírios entrarem, porque agora a maioria não gosta dos sírios.

Hoje meu pai vende roupa e minha mãe não trabalha. Na Síria ele fazia outra coisa, mas não lembro o quê.

Nos primeiros dias aqui foi difícil, porque eu não falava português. No começo eu fiquei uns dois meses sem estudar, mas comecei a brincar com amigos que fiz perto da minha casa e aprendi um pouquinho.

Quando eu entrei na escola lá em Santa Catarina —eu morei um ano lá e faz um ano que eu estou em São Paulo—, eu ainda não usava lenço. Mas os alunos perceberam [que eu era estrangeira] porque a diretoria falou que eu não falava português.

Aí todo mundo começou a perguntar e eu não entendia nada que eles falavam. Depois eu acostumei e comecei a aprender. Eles perguntavam tipo: por que você veio para o Brasil? De que cidade é você? Qual é a sua religião? Eles começaram a perguntar para conhecer coisas que eles não têm.

 
 

O lenço eu comecei a usar aqui em São Paulo. Fiquei com vergonha um pouquinho no começo. Tem gente que ficava olhando pra mim, porque tipo assim eu sou pequena e uso. Aí as meninas começaram a falar “me mostra seu cabelo”, e eu mostrei para elas, mas não na frente dos meninos.

Quando eu passo na rua às vezes as pessoas ficam olhando para mim com cara brava, tem gente que dá risada, é normal. Eu fico tranquila, porque eu uso porque eu quero.

A minha mãe fala um pouquinho de português, mas ela sempre pede ajuda para mim. Tipo quando ela quer comprar alguma coisa ela pergunta o significado ou o nome da coisa, e eu falo para ela.

Também tem coisas estranhas que eu já vi aqui, que eu conheci, que a minha família não sabe, aí eu falo para eles, tipo comidas, músicas e a roupa. Meu irmão mais velho achou um pouco difícil [se adaptar], mas meu irmão mais novo, normal.

Em Santa Catarina não tinha nenhum árabe, aí eu achava estranho. Mas aqui em São Paulo eu acho normal porque tem muitos árabes, a gente encontra na rua, eu tenho amigos árabes.

O que eu mais gosto é que os brasileiros, quando você pede ajuda, eles ajudam. Mas eu acho estranho aquelas pessoas que ficam na rua, que bebem. Lá na minha cidade não tem pessoas que bebem, porque não pode.

Também tem funks que são estranhos, tipo assim, porque a maioria tem palavrão e eu acho muito estranho. Na verdade eu não ouço música.

Quando eu não estou na escola eu gosto de ler livros em português para aprender mais. E tem palavras que às vezes eu não entendo, aí eu marco e depois quando volto em casa eu pesquiso na internet o significado.

Também costumo ir na Mesquita do Pari. Eu e a minha mãe sempre vamos juntas, mas os meus irmãos e meu pai às vezes vão sozinhos. É sexta-feira o dia sagrado para a gente, que nem para vocês é o domingo.

Eu rezo que nem eu fazia antes e é tudo normal. A minha mãe sempre faz a comida que a gente comia lá na Síria, tipo comida árabe. Às vezes eu e meu irmão mais novo comemos comida brasileira na escola, mas tem coisa que a gente não pode comer, tipo carne de porco.


Atlas inédito detalha, cidade por cidade, a imigração deste século para o estado de São Paulo.

PRINCIPAIS TENDÊNCIAS

1) Novas origens: mais de 260 países foram citados por imigrantes que chegaram ao país entre 2000 e 2015

2) Novas mulherescresce o número de mulheres que deixam sozinhas seus países, para fugir de estupros ou de violência na família

3) Novas qualificaçõesimigrantes com diploma universitário são fatia crescente, principalmente entre latino-americanos

4) Nova interiorizaçãoleis facilitam obtenção de documentos de trabalho, e imigrantes não precisam mais ficar presos a trabalhos clandestinos na capital paulista

5) Nova legislação: Brasil aprova lei que facilita entrada de estrangeiros, mas faltam políticas que permitam integração eficiente e produtiva

6) Novas chances: filhos de imigrantes viram ponte entre seus pais e a língua e os costumes do novo país

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