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Pedir a militares que salvem a democracia é uma péssima ideia

Participação das Forças Armadas em governos aumentou na última década em todo o mundo 

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Joshua Kurlantzick
Washington Post

Os resultados da eleição presidencial egípcia deste mês foram tão surpreendentes quanto o nascer do sol. O presidente Abdel Fatah al-Sissi, que chegou ao poder em 2013 em um golpe de Estado, foi reeleito com 97% dos votos. É claro que os egípcios realmente não têm outras opções. Desde o golpe, Sissi deslanchou uma campanha de repressão brutal, e a NPR informou que seis potenciais adversários foram detidos pelo governo ou pressionados a abandonar suas candidaturas. Mesmo assim, segundo H.A. Hellyer, do think tank Atlantic Council, boa parte das classes média e alta do Egito saudou Sissi, vendo-o como antídoto a um governo apoiado pelos pobres e os islâmicos.

A consolidação de poder nas mãos de Sissi, possivelmente o governante militar mais dominante em décadas no Egito, teria sido um choque há apenas dez ano, uma época em que os militares estavam se afastando da política e a democracia parecia estar avançando globalmente.

Nos anos 1990 e boa parte da década de 2000, a ideia de que oficiais militares pudessem voltar a erodir governos civis seriamente e até assumir o controle de governos pelo mundo afora –e chegariam a ser saudados pelos cidadãos— teria parecido descabida. Embora golpes de Estado e ingerência militar nos governos fossem algo comum durante a Guerra Fria, a partir de 1989 tornaram-se mais raros.

Da Indonésia ao Brasil e da Tailândia ao Chile, as forças armadas relutantemente entregaram o poder a governantes eleitos. Em muitos desses países, líderes militares mais jovens prometeram ser verdadeiramente apolíticos, e a população rejeitou os golpes e a influência do exército na política.

Nos últimos dez anos, porém, o fluxo de poder mudou de direção. Em muitos países democráticos, como Hungria, Itália, Filipinas, Polônia e possivelmente os Estados Unidos, as normas e instituições estão fraquejando, enquanto os eleitores se voltam a líderes populistas. Nos casos mais graves –inicialmente em países com sistemas democráticos fracos, como Turquia e Egito, e depois em democracias mais dinâmicas como o Brasil e a Indonésia— o poder militar está em ascensão, e os cidadãos, especialmente as classes médias, o abraçaram.

As razões disso são conhecidas. Onde os eleitores imaginavam que reformas políticas levariam a crescimento e desenvolvimento, a desigualdade global crescente gerou desilusão. Amplas transformações tecnológicas, econômicas e culturais –como a migração para a Europa central e ocidental e as políticas de austeridade instituídas em países como a Tailândia— desestabilizaram as populações, abrindo brechas para partidos populistas despóticos e líderes ditatoriais como o húngaro Viktor Orban e o tailandês Thaksin Shinawatra. Estados autoritários de influência crescente, como China e Rússia, vêm exercendo poder sobre seus vizinhos.

Mas o “remédio” militar ao qual estão recorrendo os eleitores de um número espantoso de países acelera a doença da democracia, deixando os países em situação pior que antes. Os líderes civis ficam ainda mais enfraquecidos, e os países que sofrem golpes tendem a repeti-los, em um ciclo interminável de intervenções militares.

Em algumas das maiores e mais dinâmicas democracias do mundo, as mudanças recentes na opinião pública em relação ao papel dos militares na política são espantosas. Entre os membros da geração do milênio americana, apenas 19% acreditam que um regime militar seria uma forma de governo ilegítima, segundo pesquisa do professor de Harvard Yascha Mounk e o professor da Universidade de Melbourne Roberto Foa, que estudam as visões de diferentes gerações sobre o governo.

Eles descobriram que a porcentagem de americanos em seu estudo para os quais um governo militar seria um tipo de regime “bom” ou “muito bom” mais que dobrou em relação a 20 anos atrás. E os europeus mais jovens têm tendência menor que os europeus mais velhos a desaprovar uma possível tomada militar do poder: para 36% dos europeus da geração do milênio, tal tomada do poder seria ilegítima, enquanto 53% dos europeus mais velhos a repudiariam.

Mesmo em regiões onde as cicatrizes deixadas por regimes militares ainda são mais recentes, os militares parecem estar erodindo a democracia civil sem provocar muito pânico ou reações contrárias. No Brasil, país que foi governado por um regime militar brutal entre 1964 e 1985 mas onde a democracia parecia ter deitado raízes profundas nos últimos anos, o exército vem pouco a pouco voltando a se inserir na vida política.

O governo chamou as Forças Armadas para assumir a segurança no Rio de Janeiro, atingido pela criminalidade, provocando receios entre ativistas políticos e parte da população pobre, que frequentemente foi alvo das forças de segurança públicas abusivas. Mas os pobres também sofrem as piores consequências da onda de criminalidade brutal, e aparentemente muitos deles seriam a favor do retorno dos militares.

O líder da operação no Rio disse que é possível que as tropas sejam convocadas em outras cidades, e políticos brasileiros de direita vêm sugerindo abertamente que as forças armadas deveriam voltar a ter um papel político. Um dos principais candidatos presidenciais, por exemplo, Jair Bolsonaro, derrama elogios ao regime militar e minimiza os abusos cometidos por ele, que teriam incluído a crucifixão, eletrocução e tortura de milhares de dissidentes, entre outros horrores. Ex-oficial militar, Bolsonaro já chegou a pedir o retorno do governo militar.

A intervenção no Rio parece também ter o apoio das classes média e alta. Em meio a escândalos enormes de corrupção e à estagnação econômica, a nostalgia do autoritarismo estaria em voga no país, diz a escritora Vanessa Barbara, colaboradora do jornal The New York Times, observando que a maioria dos brasileiros acredita que havia mais segurança no país quando o Exército estava no poder. Hoje, segundo pesquisa do ano passado, cerca de 43% dos brasileiros querem o controle militar temporário do governo, um aumento em relação aos 35% que se disseram a favor dessa ideia em 2016.

O Brasil não é o único país nessa situação. São múltiplas as razões por que os cidadãos em países democráticos, especialmente as classes média e alta, cada vez mais estão enxergando a possibilidade de intervenções militares como aceitável e pensam que os militares poderiam preservar as normas liberais ou barrar a ação de populistas iliberais. Em muitos países, a desilusão com os governos democráticos alimentou uma disposição em cogitar alternativas autoritárias.

O presidente filipino Rodrigo Duterte e o ex-líder egípcio Mohammed Morsi, por exemplo, não protegeram os direitos civis e a independência dos tribunais, levando líderes dos Exércitos desses países a apresentar-se como fiadores da estabilidade e dos valores constitucionais.

Em muitas democracias, como a da Indonésia, já se passaram décadas desde a era do governo militar, e os abusos passados cometidos pelos militares não foram amplamente lembrados ou ensinados nas escolas, possibilitando uma amnésia pública a esse respeito. E, em muitos países, as classes média e alta podem temer uma perda de riqueza e poder.

Na Tailândia, onde o partido populista Pheu Thai e suas encarnações anteriores vêm ganhando todas as eleições de 2001, muitos tailandeses urbanos e mais ricos, que no passado exerceram papéis importantes na transição democrática do país, abraçaram os militares, vendo-os como proteção contra a economia populista e as ocasionais tendências iliberais do Pheu Thai, como os ataques do ex-premiê Thaksin Shinawatra contra a imprensa e seus adversários. Em 2013 e no início de 2014, manifestantes saíram às ruas em Bangcoc para pedir o afastamento do governo eleito do Pheu Thai e em vários momentos incentivaram um golpe, que foi lançado em maio de 2014.

Nas Filipinas, onde Duterte lança ameaças crescentes a oposionistas e defensores dos direitos humanos e desencadeou uma guerra brutal às drogas, acadêmicos, escritores e outras lideranças da sociedade civil apontaram para o Exército como uma força que estaria impedindo o presidente volátil de fazer o que ele poderia fazer de pior, incluindo possivelmente tê-lo impedido de instituir a lei marcial em todo o país. (As Forças Armadas filipinas, que apoiaram o regime ditatorial de Ferdinando Marcos por quase 15 anos, já foram acusadas de violações em grande escala dos direitos humanos.)

Em algumas das democracias mais fracas, essas atitudes dinamizaram as Forças Armadas, levando-as a voltar a reclamar o poder. No Egito, a tolerância da classe média e da elite de uma tomada do poder pelos militares facilitou o golpe de 2013 que instalou Sissi no poder.

Na Indonésia —possivelmente a mais impressionante história de sucesso democrático no sudeste da Ásia neste século—, oficiais do exército vêm manobrando para aumentar o poder político dos militares, em parte através de tentativas de aumentar seu controle sobre questões como contraterrorismo e relações diplomáticas, segundo John McBeth, um veterano correspondente veterano no país.

Para conservar as Forças Armadas à distância, o presidente Joko Widodo vem tentando cooptá-las, nomeando atuais e antigos generais para muitos dos cargos mais altos em seu governo, algo que corre o risco de ceder poder a eles de qualquer maneira. Alguns, como o assessor presidencial Wiranto, teriam tido vínculos com amplas violações dos direitos humanos durante o passado autoritário da Indonésia.

Em Mianmar, onde a eleição em 2015 do partido Liga Nacional pela Democracia, de Aung San Suu Kyi, pareceu assinalar uma virada dramática após décadas de governo militar que converteram o Exército em uma instituição odiada, as Forças Armadas agora estão cada vez mais populares em todas as classes de maioria étnica birmanesa.

Os militares armadas conseguiram apresentar-se como defensoras da estabilidade e do nacionalismo, embora ao mesmo tempo comandem a limpeza étnica do estado ocidental de Rakhine. Alguns analistas políticos acreditam que o líder atual do Exército, o general Min Aung Hlain, será candidato à Presidência em 2020. Se for, é possível que encontre apoio forte no país.

Mesmo nos Estados Unidos, onde existe pouca ameaça de uma tomada do poder pelos militares, os americanos estão chocantemente tolerantes da presença de generais nos níveis mais altos do controle civil.

Antes do início da Presidência de Trump, veículos de mídia e membros do Congresso começaram a retratar o secretário de Defesa escolhido por Trump, Jim Mattis, como proteção contra um possível retrocesso da democracia. Em um artigo no site Politico, Patrick Granfield, ex-redator de discursos do secretário da Defesa Ash Carter, elogiou “os generais que protegem a democracia” contra a nova administração Trump, incluindo Mattis e o agora chefe do gabinete John Kelly.

A revista The Atlantic observou em janeiro de 2017 que “os generais parecem constituir um dos poucos freios às medidas de Trump” para enfraquecer a democracia. Quando o presidente nomeou H.R. McMaster como seu assessor de segurança nacional, parlamentares democratas, como o deputado Adam Schiff, da California, elogiaram McMaster por sua honestidade e franqueza e previram que ele defenderia os valores americanos.

Mas conduzir militares ao poder, ou mesmo lhes entregar poder parcial, garante o declínio democrático futuro ainda maior de um país. Para começar, como notaram o cientista de dados Jay Ulfelder e outros, países que já tiveram um golpe de Estado têm tendência maior a sofrer outro nos cinco anos seguintes.

Encorajados por sua elevação na política, os militares podem se entrincheirar nos sistemas políticos e ao mesmo tempo alimentar uma espécie de “cultura golpista” em suas fileiras, segundo o acadêmico Nicholas Farrelly. Nesses casos, os oficiais seniores ensinam aos mais jovens que intervenções militares são permissíveis.

Na Tailândia e no Paquistão, onde os militares intervêm na política repetidamente, os oficiais aprendem que um golpe é a maneira apropriada e comum de lidar com qualquer impasse político. (É verdade que, em casos raros —como o do Zimbábue, uma autocracia de longa data sem uma saída política evidente—, um golpe militar pode conduzir a um resultado democrático positivo se seus líderes criam uma estrutura para eleições e um governo democrático.)

Tampouco há evidências de que colocar mais poder em mãos militares possa promover o Estado de direito e o liberalismo constitucional. Em análise publicada dois anos atrás no Washington Post, os cientistas políticos Joseph Wright, Erica Frantz, Barbara Geddes e George Derpanopoulos concluíram que desde o final da Guerra Fria “o resultado mais comum de golpes de Estado tem sido a substituição de uma ditadura por um grupo diferente de autocratas” —e que os golpes alimentam aumentos da repressão no ano seguinte.

Na Tailândia e no Paquistão, o Exército tem frequentemente tomado o poder prometendo combater a corrupção, mas há poucas evidências de que governos militares constituam um freio à ela. A junta militar atual da Tailândia, que criticou o governo eleito anterior por sua alegada corrupção, agora enfrenta escândalos próprios.

Finalmente, depositar as esperanças nos militares como força contrária a governos tirânicos, mas eleitos, gera uma distração perigosa das maneiras reais pelas quais cidadãos podem combater a democracia despótica e, desse modo, enfraquece ainda mais o governo civil.

Os eleitores e seus partidos podem desenvolver plataformas políticas mais atraentes ou usar protestos para proteger instituições democráticas reais, como o Judiciário. A partir do momento em que um país coloca os militares na posição de guardiões máximos das normas e instituições, é difícil persuadi-los a abrir mão do poder.

Joshua Kurlantzick é membro sênior do Council on Foreign Relations; tradução de Clara Allain

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