Robôs, clima e envelhecimento darão impulso a imigração, diz pesquisador

Especialista da ONU vê benefícios para economia, mas diz que é preciso debelar preconceitos

Ana Estela de Sousa Pinto
São Paulo
Imigrantes participam de cerimônia em que receberam a cidadania americana em Los Angeles, nos Estados Unidos
Mais de 7.000 imigrantes participam de cerimônia em que receberam a cidadania americana em Los Angeles, nos Estados Unidos - Mario Tama - 20.mar.2018/Getty Images/AFP

Mudanças drásticas no trabalho e no clima vão impulsionar a imigração no futuro próximo, diz um dos principais pesquisadores do tema, Francisco Cos Montiel, do Instituto sobre Globalização, Cultura e Mobilidade da Universidade da ONU.

“Haverá grande demanda por certas profissões, que terá que ser atendida muito rapidamente, enquanto grandes grupos verão suas habilidades profissionais substituídas ou exterminadas.”

O envelhecimento progressivo da população mundial também afetará os deslocamentos de pessoas: cuidar de pessoas é algo que os humanos ainda farão melhor que as máquinas, e esse é um trabalho desempenhado tipicamente por migrantes.

Montiel, que deu uma conferência online no lançamento do “Atlas das Migrações em São Paulo”, na última sexta (6) na Fapesp, aponta ainda uma tendência crescente de controle sobre os fluxos de pessoas, à medida que governos coletam, processam e acompanham cada vez mais dados sobre indivíduos.

Para ele, pesquisas que forneçam informações objetivas sobre os impactos das imigrações são muito relevantes, mas é fundamental combater ao mesmo tempo o preconceito cujos efeitos “são tão maléficos que chegam a ameaçar a segurança pública”.

 

Francisco Cos Montiel, pesquisador sênior do Instituto sobre Globalização, Cultura e Mobilidade, Universidade das Nações Unidas
Francisco Cos Montiel, pesquisador sênior do Instituto sobre Globalização, Cultura e Mobilidade, Universidade das Nações Unidas - Divulgação

Folha - Ainda é possível falar em imigração como a concebíamos até há pouco, em que pessoas deixavam um país para se fixar em outro? Ou a mobilidade muito maior suplantou esse quadro? 

Francisco Cos Montiel - O que sabemos agora é que sem dúvida a imigração vai crescer nas próximas décadas. No século 21 a mobilidade humana alcançou fluxos sem precedentes. O número de migrantes aumentou quase 50% entre 2000 e 2017, passando a 258 milhões de pessoas.

Mas a migração é cada vez mais fluida. Até há poucos anos, as pessoas emigravam para se estabelecer em um país. Agora elas estão dispostas a passar de um país a outro atrás de oportunidades.

Há tendências? Ou são fluxos imprevisíveis, incontroláveis? 

Alguns fatores que produzem a migração são bem conhecidos, como escapar de conflitos ou buscar oportunidades econômicas, mas há atualmente novas causas, como mudanças climáticas ou mudanças extremas em algumas áreas de negócios, que vão transformar dramaticamente a oferta e demanda de trabalhadores migrantes.

Qual será esse futuro?

Não sou futurista nem quero fazer previsões irresponsáveis, mas alguns fatores vão marcar a imigração, além de conflitos armados que não podemos prever.

A mudança climática vai expulsar de suas terras uma quantidade enorme de pessoas. No Pacífico muitos dos estados insulares vão ficar sob a água em um futuro não longínquo. Em outros, mudança importante na agricultura vai obrigar as pessoas a migrar para centros urbanos ou outros países.
 

Outra tendência importante é a transformação do trabalho. Avanços tecnológicos rápidos estão criando e destruindo empregos, uma tendência que vai crescer de maneira exponencial. Isso supõe que haverá grande demanda por certas profissões, que terá que ser atendida muito rapidamente, enquanto grandes grupos verão suas habilidades profissionais substituídas ou simplesmente exterminadas. Isso terá impacto importante na migração de trabalhadores.

A biotecnologia também vai elevar a expectativa de vida. Os seres humanos vão viver mais e precisar de mais cuidados. Haverá uma demanda nunca antes vista por trabalhadores no setor de cuidado, em que a automatização não substituirá o humano rapidamente. E este, como sabemos, é um setor atendido por trabalhadores migrantes.

Por fim, com os avanços da sistematização, armazenamento e intercâmbio de dados pessoais, a maioria de nós estaremos identificados, o que terá impacto enorme no controle da migração.

A fluidez tem prós e contras quando comparada com fenômenos mais rígidos. No caso dos fluxos de pessoas, quais seriam prós e contras?
 

A análise de prós e contras é sempre subjetiva. Faltam dados para fazer uma análise de custo-benefícios dos impactos, sobretudo sociais, dos migrantes sobre a sociedade. É nisto que o papel da pesquisa é muito relevante.

Um dos aspectos distintos das migrações atuais é o grande número de mulheres que deixam seus países sozinhas ou apenas com seus filhos

É verdade, hoje metade dos imigrantes são mulheres e a tendência é que cada vez mais migrem sozinhas. Mesmo  em sociedades em que as mulheres não tem tanta autonomia, como o sul da Ásia, elas estão partindo de forma independente. Isso revela mudanças importantes na atitude das mulheres, que perseguem oportunidades melhores para elas e seus entes queridos.

O que distingue a migração feminina da masculina?

Para entender as diferenças é preciso voltar ao conceito de diferença sexual. Há momentos em que ela não importa, ou não deveria importar. Por exemplo, se uma empresa precisa de agricultores especializados ou empregados no setor de serviços, o que importa são as habilidades dos candidatos e não o gênero.

Mas há momentos em que as mulheres têm necessidades diferentes, como em relação à saúde sexual e reprodutiva ou à integridade física. Nesse ponto precisam de políticas que enderecem suas necessidades.

Por outro lado, o discurso que apresenta as mulheres como vítimas ou infantis, necessitadas de proteção, como se não tivessem capacidade de tomar suas próprias decisões, é muito prejudicial.

É preciso retratá-las como são: seres humanos em busca de um futuro melhor.

Importa distinguir entre refugiados e imigrantes econômicos? Os fenômenos demandam políticas públicas diferentes?

Sim, a distinção é conceitualmente importante. Gosto da definição de Parvati Nair [fundadora do instituto da ONU no qual trabalha Montiel],​que diz que o refugiado levanta a ideia da nação como um lugar de abrigo, o imigrante, principalmente o que atravessa fronteiras, é visto como o “outro” que vem ao “nosso país”.

Ainda que a declaração universal dos direitos humanos garanta a todo ser humano o direito de deixar seu país, para entrar em outro é preciso autorização. Os refugiados que obtêm esse status jurídico cumprem com a lei, mas os imigrantes, principalmente os que não conseguem documentos, se transformam em intrusos. 

Na realidade, porém, a diferença não é tão clara.

No Brasil, menos de 1% da imigração é hoje imigrante, mas é forte o discurso de que não deveríamos recebê-los se temos nossos próprios necessitados. Há algo a fazer no campo da comunicação para reduzir o preconceito e a rejeição?
 

É preciso ter mais dados que nos ajudem a fazer políticas públicas. Na maioria dos casos os estudos mostram que a maior parte dos temores é infundada e resultado de preconceitos muito enraizados.
Como transformar preconceitos? Estamos cheios deles, e o que dá ao preconceito um caráter patológico é a impossibilidade de exterminá-lo mesmo com provas empíricas ou teóricas.

Dados concretos ajudam pouco, então?
 

Pois é, não importa que pesquisas produzam resultados contundentes, porque o preconceito continua alimentando as práticas e crenças; E são uma estratégia excelente para se eximir de responsabilidades. Os meios de comunicação podem exercer um papel importante, mas precisam entender a força inconsciente dos preconceitos. Nossas pesquisas mostram que os preconceitos podem ter efeitos tão maléficos que chegam a ser uma ameaça à segurança.

O Brasil avançou em marcos legais que facilitam a entrada de imigrantes, mas falta de coordenação centralizada, ações e programas definidos e dotação orçamentária. O resultado é que ondas migratórias sobrecarregam os serviços públicos e geram crises. Isso pode explicar parte da rejeição aos estrangeiros?

Não conheço suficientemente o caso do Brasil para comentar. A sobrecarga de serviços públicos é capaz de provocar irritação, mas a rejeição contra imigrantes é na verdade mais um sintoma de descontentamento com a erosão dos serviços sociais em muitas partes do mundo.

Aqui também é relevante o preconceito, tanto da sociedade quanto dos próprios funcionários públicos. Eles partem do princípio de que os imigrantes são diferentes e não devem ter os mesmos direitos dos trabalhadores do país, e se eximem da responsabilidade de prestar serviços a eles.

Alguns estudos apontam para impacto positivo das imigrações na economia dos países. Concorda com as conclusões? 
 

Sim, muitos estudos apontam para essa relação positiva. 

Quais as condições necessárias para esse impacto virtuoso?
 

Ele acontece principalmente quando uma sociedade precisa do trabalho que eles fazem. A China é um caso claro em que migrantes internos impulsionaram a construção e a indústria, dois motores do imenso crescimento do país. E há imensos benefícios também para os países de origem. Hoje em dia, as remessas de migrantes são significativas em países tão diversos quanto México, Índia e Filipinas.

Considero que ocorre com o tema da imigração algo muito similar ao que acontece com o trabalho que faz a maioria das mulheres para cuidar de outros seres humanos. Ele não recebe o valor necessário, apesar de todos os dados com que já contamos. Fica invisível, sem receber o valor econômico e social que merecem.

Mas, como falamos, os dados não servem de muito se não forem acompanhados de combate ao preconceito.

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.