Descrição de chapéu Venezuela

Apesar de escassez e crise na saúde, idosos resistem a deixar a Venezuela

Moradores mais velhos ressaltam beleza e hospitalidade do país, embora critiquem Maduro

Sylvia Colombo
Buenos Aires e Caracas

María Laura Fuente teve câncer de pele há oito anos, e os médicos disseram que estava curada. "Mas agora voltaram a aparecer manchas e estou preocupada", diz a venezuelana de 72 anos, abotoando discretamente a blusa para que não fosse possível ver a mancha que a preocupa. 

A diferença, conta, é que hoje ela não faria os exames em Caracas sem pagar caro. Por isso viaja na semana que vem para Portugal, onde os filhos moram há cinco anos.

Cercado por tropa de choque, homem segura bengala e pedaço de pão na Marcha dos Avós, ato da série de protestos contra Nicolás Maduro de 2017
Cercado por tropa de choque, homem segura bengala e pedaço de pão na Marcha dos Avós, ato da série de protestos contra Nicolás Maduro de 2017 - Francisco Bruzco - 12.mai.17/Xinhua

"Nem me importo de estar doente, o tratamento é o que menos interessa, estou feliz porque vou reencontrá-los. Sei que está custando uma fortuna para eles me levar para lá, preferia não ser esse estorvo", conta à Folha, com olhos marejados, a ex-enfermeira. 

"Sinto pelos amigos que deixo e pelos idosos que não têm a sorte de poder ir para um lugar onde poderiam receber um tratamento digno."

A Venezuela possui 5 milhões de habitantes com mais de 55 anos, idade mínima para receber a bolsa implementada na gestão do ex-presidente Hugo Chávez (1954-2013). 

Para 20% dessa população, essa é a única renda mensal, e cobre só 5% da cesta básica e 15% dos custos de um cidadão de terceira idade, segundo a Federação de Pensionistas e Aposentados da Venezuela.

A crise dos idosos começou a ficar mais séria há quatro anos, quando os asilos, privados ou públicos, começaram a fechar as portas por falta de recursos. Hoje um terço das 150 casas continuam abertas.

Geralmente, as imagens que mostram os refugiados cruzando fronteiras, ou venezuelanos aterrissando em outros países buscando uma nova vida numa nação em que a fome e a falta de remédios não sejam um problema constante, são de pessoas mais jovens. 

Atrás, costumam ficar os mais velhos —ou que não podem migrar, por condições físicas, ou porque não querem. Célia Solorzáno, 71, mora em Bello Monte, bairro de classe média caraquenho que virou campo de batalha entre manifestantes e as forças do regime de Nicolás Maduro entre abril e julho de 2017.

"Eu fechava todas as portas e janelas ao meio-dia, ficava ouvindo a barulheira, os tiros, tremendo de medo, e só abria tudo de novo na manhã no dia seguinte, quando a bagunça já tinha passado. Aí saía para comprar o pão, o que mais se pode fazer?".

 


Também viúva, Célia diz que não quis acompanhar nenhum dos três filhos que deixaram o país. Um foi para a Espanha, dois estão na Colômbia. O que está na Europa é médico, conta, com orgulho, e teria condições de mantê-la. 

"Ele quer me tirar daqui de qualquer jeito. Não vê sentido em eu querer ficar num lugar turbulento, em que nem mesmo posso adoecer. Mas jovem não entende. Passei minha vida de casada toda nessa casa", diz, apontando para fotos do casamento, da família junta com os filhos pequenos. 

"Eu já viajei bastante, sei como é o mundo, e sei que esse é o meu país, com todos os seus defeitos. Não tem cidade no mundo melhor que Caracas. Isso aí [o governo] não vai estar aí para sempre", conclui.

 
 


Pergunto como ela tem encontrado recursos para viver. "Os filhos ajudam. Não se preocupe comigo, filha. Saia pela rua e pergunte aos velhos deste país que estão à sua própria sorte, nas ruas, esperando Deus passar para levá-los."

Se Célia consegue combinar a aposentadoria do Estado com a ajuda dos filhos, de fato é uma afortunada. As estimativas são de que cerca de 900 mil idosos venezuelanos não têm nenhum tipo de cobertura por parte do Estado.

É por isso que é comum ver muitos deles no comércio de rua, ou guardando carros num estacionamento, ou trabalhando em casas de família.

Se para classe média é possível juntar mais de uma renda e sobreviver à inflação de 1.088% (segundo o FMI, ou 6.000% segundo a Assembleia Nacional opositora), a coisa muda nos bairros pobres.

No Petare, Alida La Cruz, 78, mora com uma filha, professora de um colégio público, mas as duas não conseguem cobrir os custos da casa. 


"Estamos aqui de favor", conta Alida, ex-professora. "Temos sorte de não pagar aluguel", e mostra, movendo sua cadeira de rodas, os dois ambientes pequenos da casa. 


Num deles, há duas caminhas de criança. Netos? "Não, são dois filhos de uma amiga, que morreu por causa da desnutrição. Ela não comia para alimentar os filhos. Nós aqui do bairro não queríamos que os dois moleques fossem levados para um orfanato do governo, porque iam separá-los."

Pergunto se não é uma carga muito grande cuidar de duas crianças, na situação em que ela está --diabética, Alida teve de amputar uma das pernas. 

"Nenhuma carga é grande se as pessoas se ajudam. E, numa comunidade como esta, todo mundo se ajuda. Todo dia alguém deixa aqui a sobra de uma compra do mercado, e a gente vai alimentando os meninos, e a nós, como dá."

Pergunto se ela gostaria de sair da Venezuela. "Não, de jeito nenhum, olhe para isso", e me mostra a pracinha diante da qual vive, ao fundo, as montanhas que cercam Caracas. 

"É o melhor lugar do mundo, o clima, as pessoas. Só estamos em problemas por causa desses bandidos no poder. E olha que eu sempre votei no Chávez", disse, rindo. "Maduro é um descarado."

No mesmo Petare, nos fundos de uma Igreja, funciona o La Solidaridad, um refeitório armado por Betty Díaz (que não conta a idade), uma ex-militante política, agora ativista social. Todos os dias, recebe 120 crianças, que comem antes e depois de ir à escola. 


"Sempre morei aqui, e de repente nos últimos tempos comecei a ver muita criança na rua. Comecei a perguntar por que não estavam na escola, e percebi que era porque não comiam." 


Betty foi então falar com o padre da paróquia mais próxima, que cedeu o espaço onde, em 26 de abril, Betty e duas ajudantes cortavam batatas para o dia seguinte.

"Eu faço o menu da minha cabeça, não sou nutricionista, mas tenho alguma noção. Hoje eles comeram sopa de carne, amanhã vai ser batata com carne moída", conta.

Betty conta que sua única preocupação é a responsabilidade. E o desespero bate quando vê que o preço das coisas básicas para a refeição não param de aumentar. 

"Um milhão de bolívares por um quilo e meio de arroz, quatro milhões por um quilo de frango, como pode ser?"Desde que o refeitório abriu, há menos de um ano, estabeleceu regras: só crianças que estão na escola, apresentem as listas de presença e venham com a mãe podem comer.

Também ex-eleitora de Chávez, se diz decepcionada com o atual governo. Vontade de ir embora? "Não tenho, nasci e cresci aqui, nessas ruas está toda minha história. Que saiam eles, não eu", diz, bem humorada. "Eu já fiz muita coisa, agora temos que cuidar deles, que são o futuro da Venezuela", e aponta para os garotos tomando sua sopa.

Minhas lembranças não podem roubar, diz idoso em baile

São 18h de sábado num centro comunitário de Baruta (ao sul da capital). Na porta, um carro da polícia municipal, não alinhada ao governo e com agentes mais amistosos.

"A gente vem aqui a pedido deles", diz um deles, que fazia a segurança de um recital de boleros para a terceira idade. 

Uns entram de bengala, outros chegam em casais, outros sozinhos, e se sentam em cadeiras de plástico. Cada um traz algo para beber ou comer e deixa numa mesa ao fundo.

O grupo de cantores se alinha, pergunta o que gostariam de ouvir, faz piadas e começa a emendar boleros que quase todos cantam junto. Um homem timidamente se levanta e abre os braços, olhando para as mulheres. 

Do fundo do salão, uma delas se anima e se junta a ele para dançar. O resto do grupo aplaude. Outro casal se anima e encontra um espacinho no pequeno salão para dançar também.

"Há anos eu não dançava", conta Jorge Osório, 82, quando lhe pergunto onde aprendeu a dançar tão bem. "Ah, isso foi na minha juventude, depois enferrujei."

"Tem coisa que não tem como eles tirarem de nós, quem pode roubar uma canção, uma emoção, uma lembrança? A minha Venezuela existe aqui", diz seu Osório, o dançarino da noite, apontando para o coração.

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