Descrição de chapéu The New York Times

Austeridade diminui benefícios sociais e transforma o Reino Unido

Após oito anos de cortes, país parece cada vez menos o resto da Europa e cada vez mais os EUA

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Quartel de bombeiros que foi fechado por falta de verbas em Liverpool, na Inglaterra
Quartel de bombeiros que foi fechado por falta de verbas em Liverpool, na Inglaterra - Andrea Bruce/The New York Times
Peter S. Goodman
Prescot (Reino Unido) | The New York Times

Uma caminhada por esta cidade modesta no noroeste da Inglaterra representa uma excursão pelas mortes da era de austeridade no Reino Unido .

O antigo prédio da biblioteca foi vendido e transformado em uma residência de luxo. O centro de lazer foi demolido, eliminando a piscina pública. O museu local recuou para a história da cidade. A delegacia de polícia foi fechada.

Hoje, enquanto o governo local tenta desesperadamente transformar seus bens em dinheiro, o Browns Field, um parque no centro da cidade, também pode estar condenado. Em uma reunião em novembro, o conselho de representantes municipais o incluiu em uma lista de 17 parques a serem vendidos para imobiliárias.

"Todo mundo usa este parque", disse Jackie Lewis, que criou dois filhos em uma casa de tijolos no mesmo bairro. "Este é provavelmente nosso último pedaço de espaço comunitário. Foi um atrás do outro. Você acaba simplesmente deprimida."

Nos oito anos desde que Londres começou a reduzir acentuadamente o apoio aos governos locais, o bairro de Knowsley, uma comunidade-dormitório de Liverpool, teve seu orçamento cortado aproximadamente pela metade. A própria Liverpool sofreu um corte de quase 66% em financiamento do governo nacional —sua maior fonte de receita disponível. As comunidades em grande parte do Reino Unido sofreram perdas semelhantes.

A campanha prolongada de cortes fiscais, iniciada em 2010 pelo governo do Partido Conservador, produziu uma mudança monumental na vida britânica. A onda de austeridade gerou um país acostumado a viver com menos, enquanto muitas medidas de bem-estar social —índices de crimes, dependência de drogas, mortalidade infantil, pobreza infantil e falta de moradia— apontam uma deterioração da qualidade de vida.

Quando o casal Lewis comprou sua casa, há 25 anos, Prescot dava uma sensação confortável de aldeia. Hoje, programas de ajuda essenciais do governo estão sendo cortados e edifícios públicos são eliminados, aumentando a pressão sobre serviços públicos como polícia e bombeiros, que também lutam com a redução de verbas.

Até 2020, as reduções já implementadas vão produzir cortes nos programas de assistência social britânicos superiores a US$ 36 bilhões (R$ 134 bilhões) por ano, comparados com uma década antes, ou mais de US$ 900 (R$ 3.360) por ano para cada pessoa em idade ativa no país, segundo um estudo do Centro para Pesquisa Econômica e Social Regional da Universidade Sheffield Hallam. Em Liverpool, os prejuízos vão chegar a US$ 1.200 (R$ 4.480) por ano por pessoa em idade ativa, segundo a pesquisa.

"O governo criou destituição", disse Barry Kushner, um vereador do Partido Trabalhista em Liverpool e membro do gabinete para serviços à infância. "A austeridade não teve nada a ver com a economia. Era sobre sair da assistência social. É sobre a política abandonar as pessoas vulneráveis."

 Emma Wilde, left, Lucas Wilde, center, and Libbie Wilde live in a Liverpool neighborhood where many live in poverty, in Croxeth, England
Emma Wilde (de preto) no bairro de Croxeth, em Liverpool, onde viveu toda a vida; ela perdeu o acesso aos benefícios sociais que usava para sustentar os dois filhos - Andrea Bruce/The New York Times

Líderes do Partido Conservador dizem que a austeridade foi conduzida por nada mais grandioso que aritmética.

"É a ideologia do dois mais dois são quatro", disse Daniel Finkelstein, um deputado conservador da câmara alta do Parlamento, a Câmara dos Lordes, e colunista do jornal The Times de Londres. "Não foi conduzida por um desejo de reduzir os gastos nos serviços públicos. Foi conduzida pelo fato de que tivemos um enorme problema de deficit, e a dívida ia continuar crescendo."

A austeridade remodelou a sociedade britânica, tornando-a menos parecida com o resto da Europa e mais com os EUA, onde milhões de pessoas não têm assistência médica e a perda de empregos provocou uma queda acelerada das fortunas.

O Reino Unido reagiu ao trauma da Segunda Guerra Mundial forjando seu próprio Estado do bem-estar social. Os EUA reduziram constantemente os benefícios desde a revolução Reagan dos anos 1980. O Reino Unido encolheu seus programas na mesma época, sob a liderança de Margaret Thatcher. Mas sua rede de segurança continuou robusta pelos padrões mundiais.

Então veio o pânico financeiro global de 2008 —a mais paralisante recessão econômica desde a Grande Depressão. A virada do Reino Unido de seu Estado assistencialista diante dos enormes deficits orçamentários é um indício visível de que o mundo foi remodelado pela crise.

Enquanto a economia global hoje negocia uma transição difícil —com empregos itinerantes ocupando cargos em tempo integral e robôs substituindo o trabalho humano—, a experiência britânica provoca dúvidas sobre a durabilidade do modelo tradicional de assistencialismo estatal. Enquanto o capitalismo no estilo ocidental enfrenta profundo questionamento sobre justiça econômica, o número de pessoas vulneráveis parece estar crescendo.

Os líderes do Partido Conservador inicialmente venderam os cortes orçamentários como uma virtude, introduzindo o que eles chamaram de Grande Sociedade. Diminuindo o papel de uma burocracia inchada do governo, afirmavam eles, as organizações populares e beneficentes e empresas privadas dariam um passo à frente, revivendo comunidades e entregando serviços públicos de modo mais eficiente.

Até certo ponto, o espírito de voluntarismo se materializou. Nas bibliotecas públicas, hoje o número de voluntários supera o de contratados. Nas comunidades em dificuldades, os moradores formaram bancos de alimentos enquanto distribuem uniformes escolares de segunda mão. Mas para muitos no Reino Unido isso é semelhante a incendiar sua casa e depois apreciar o espírito comunitário quando os vizinhos vêm ajudar a extinguir o fogo.

O Reino Unido não sofreu a austeridade no mesmo grau que a Grécia, onde os cortes foram rápidos e draconianos. A austeridade britânica foi uma sangria lenta, embora o preço acumulado tenha sido substancial.

Os governos locais sofreram uma queda de aproximadamente 20% nas receitas desde 2010, somando-se os impostos que coletam, segundo o Instituto de Estudos Fiscais, em Londres.

No nível nacional, o gasto com forças policiais diminuiu 17% desde 2010, enquanto o número de policiais caiu 14%, segundo uma análise do Instituto para Governança. Os gastos com manutenção de estradas encolheram mais de 25%, enquanto o apoio a bibliotecas diminuiu quase 33%.

O sistema nacional de tribunais eliminou quase um terço de seu pessoal. Os gastos com prisões caíram mais de 20%, e os ataques violentos a guardas prisionais mais que duplicaram. O número de idosos que recebem cuidados fornecidos pelo Estado, que lhes permitem ficar em casa, caiu aproximadamente 25%.

Em uma realidade alternativa, esse trecho incômodo da história poderia estar acabando agora. As medidas de austeridade foram impostas em nome de se eliminar deficits orçamentários, e no ano passado o Reino Unido finalmente produziu um modesto superavit orçamentário.

Mas a realidade é dominada por temores de que a iminente saída do Reino Unido da União Europeia deprima o crescimento pelos próximos anos. Apesar de todas as grandes economias da Terra terem se expandido ultimamente, a do Reino Unido mal cresceu durante o primeiro trimestre deste ano. O índice de desemprego paira pouco acima de 4% —o menor desde 1975—, mas a maioria dos salários permanece mais baixa que a uma década atrás, depois de contabilizada a inflação.

"É claramente um ataque à nossa classe", disse Dave Kelly, um pedreiro aposentado da cidade de Kirkby, nos arredores de Liverpool, onde muitas fábricas estão vazias. "É um ataque a quem nós somos. Toda a sociedade industrial está se rompendo."

O parque Browns, na cidade de Prescot, próxima a Liverpool, que o município quer vender
O parque Browns Field, na cidade de Prescot, próxima a Liverpool, que o município quer vender - Andrea Bruce/The New York Times

Um vilão improvável 

Londres faz os cortes agregados, enquanto deixa para os políticos locais o trabalho sujo de distribuir a dor. As pessoas treinam sua fúria no conselho de Knowsley, em especial contra o homem que até recentemente foi seu líder, Andy Moorhead. Elas o acusam de fabricar às pressas planos para vender o Browns Field sem consultar a comunidade.

Moorhead, 62, parece uma figura improvável para o papel de vilão da austeridade. Um membro de carreira do Partido Trabalhista, ele tem o aspecto de um freguês comum do "pub" da esquina.

"Não me tornei um político para tirar coisas das pessoas", diz ele. "Mas você tem de lidar com a realidade."

A realidade é que Londres está reduzindo as verbas dadas aos governos locais, obrigando os conselhos a viver dos impostos urbanos e empresariais.

"A austeridade veio para ficar", disse Jonathan Davies, diretor do Centro para Pesquisa Urbana sobre Austeridade na Universidade De Monfort em Leicester, na Inglaterra. "O que poderemos ver nos próximos dois anos é uma onda de falências, como em Detroit."

Para Moorhead, a equação termina com o imperativo de vender terras valiosas, produzindo um fundo para proteger parques e serviços.

No início de maio, o Partido Trabalhista local demitiu Moorhead como líder do conselho em meio à crescente revolta sobre a planejada venda de parques.

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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