Descrição de chapéu The Washington Post

Furacão Maria provocou milhares de mortes a mais em Porto Rico que o divulgado

Estudo de Harvard aponta que houve mais de 4.000 mortos, ante 64 de estimativa oficial

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Estragos provocados pelo furacão Mariana na cidade de Catano, em Porto Rico
Estragos provocados pelo furacão Mariana na cidade de Catano, em Porto Rico - Hector Retamal - 21.set.2017/AFP
Laurie McGinley Arelis Hernández
Washington e Caguas (Porto Rico) | Washington Post

Pelo menos 4.645 pessoas morreram em consequência do furacão Maria e da devastação que causou em Porto Rico no ano passado, segundo um novo estudo de Harvard divulgado nesta terça-feira (29).

A estimativa supera em muito o número oficial do governo, 64.

Publicado no New England Journal of Medicine, o estudo descobriu que a interrupção dos serviços de saúde aos idosos e a perda de serviços públicos básicos para os pacientes de doenças crônicas tiveram impactos significativos em todo esse território associado aos EUA, que foi atirado no caos em setembro, depois que o furacão varreu a rede elétrica e teve impactos generalizados na infraestrutura. 

Algumas comunidades ficaram totalmente isoladas durante semanas, com estradas bloqueadas e falhas nas comunicações. 

Pesquisadores nos EUA e em Porto Rico, liderados por cientistas da Escola de Saúde Pública T. H. Chan da Universidade Harvard e do Centro Médico Beth Israel Deaconess, calcularam o número de mortos pesquisando cerca de 3.300 famílias escolhidas aleatoriamente em toda a ilha e comparando o índice de mortes estimado após o furacão com o índice de mortalidade do ano anterior. 

Suas pesquisas indicaram que o índice de mortalidade foi de 14,3 por mil moradores de 20 de setembro a 31 de dezembro de 2017, um aumento de 62% comparado com 2016, ou 4.645 "mortes excedentes".

"Nossos resultados indicam que o número oficial de mortos, 64, é uma subestimativa substancial do verdadeiro peso da mortalidade depois do furacão Maria", escreveram os autores.

As estimativas oficiais de mortes atraíram fortes críticas de especialistas e moradores locais, e o novo estudo criticou os métodos de contagem de mortos de Porto Rico —e sua falta de transparência ao compartilhar informação— como um empecilho ao planejamento para futuros desastres naturais. 

Os autores pediram que pacientes, comunidades e médicos desenvolvam planos de contingência para desastres naturais.

O Maria causou prejuízos de US$ 90 bilhões, tornando-se o terceiro ciclone tropical mais caro da história americana desde 1900, segundo os pesquisadores.

Mais de oito meses depois que o furacão devastou Porto Rico, a lenta recuperação da ilha foi marcada pela constante falta de água, falhas na rede elétrica e a falta de serviços essenciais. 

Tudo isso pôs em risco a vida de muitos moradores que têm lutado para se reerguer, especialmente os doentes e os que vivem em áreas distantes, alguns dos quais foram os mais duramente atingidos pelo furacão.

A contagem dos mortos nesses desastres naturais é sempre uma tarefa difícil, mesmo sob circunstâncias ideais. Em Porto Rico, foi prejudicada pelas diversas falhas sistêmicas e pelo que os pesquisadores de Harvard acharam um método complexo de certificar as mortes em San Juan. 

Os pesquisadores notaram que os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dizem que as mortes podem ser diretamente atribuídas a tempestades como o Maria quando são causadas por forças relacionadas ao evento, de destroços voadores à perda de serviços médicos; em Porto Rico essas mortes continuaram durante meses.

Entre os que morreram em consequência de lapsos no serviço médico estava Ivette Leon, 54, mãe de um grupo de escoteiros que morreu em 29 de novembro, cerca de 18 horas depois que foi liberada do hospital após o furacão. 

Leon tinha adoecido, sentindo dores no corpo todo, com vômitos e calafrios. Os médicos lhe disseram que era uma infecção, deram-lhe medicamentos e a liberaram para a família. 

Miliana Montanez segurou a cabeça de sua mãe enquanto esta morria no chão de seu quarto em Caguas, sem conseguir respirar e suplicando por ajuda. Não havia nada que a família pudesse fazer. Levaram 20 minutos para encontrar sinal do celular e ligar para a emergência. Os sinais de trânsito parados detiveram a ambulância que tentava chegar ao bairro pelo enorme congestionamento.

Os olhos de Leon se arregalaram aterrorizados quando ela descreveu para sua filha os pequenos pontos de luz que apareceram à sua frente momentos antes de tudo terminar. Ela fez uma última inspiração desesperada. Foi quando os paramédicos chegaram. Tarde demais.

"A pior parte era saber que eu não podia fazer nada para ajudá-la", disse Montanez, 29, mãe de dois filhos. 

"Saber que ela não morreu em paz significa que eu nunca terei sossego."

A morte de Leon repercutiu em sua família e na comunidade. Seu filho, um estudante colegial numa cidade a duas horas de viagem, não vê mais motivo para voltar para casa. Seu marido está retraído e perto de perder o emprego. Sua filha luta para compreender o que aconteceu enquanto luta para combater o desespero e a raiva lembrando o caos que perturbou os últimos momentos de Leon no chão da casa.

O governo de Porto Rico enfrentou um exame imediato depois de relatar inicialmente que 16 pessoas tinham morrido em consequência da tempestade, que arrasou grande parte da ilha em 20 de setembro de 2017. 

Esse número mais que duplicou depois que o presidente Donald Trump visitou o lugar em outubro, quando comentou especificamente o baixo número de mortos. 

O número continuou aumentando até o início de dezembro, quando as autoridades disseram que 64 pessoas tinham morrido.

O número oficial incluía diversas pessoas de todo Porto Rico, como as que sofreram ferimentos, foram arrastadas por inundações ou não conseguiram chegar a um hospital enquanto sofriam grave condição médica. 

O nº 56 era uma pessoa da cidade de Carolina que sangrava pela boca, mas não conseguiu chegar a um hospital nos dias seguintes à tempestade. Quando chegou, o paciente foi diagnosticado com pneumonia e morreu de insuficiência renal. 

O nº 43, de Juncos, sofria dificuldade respiratória e foi ao hospital —mas foi liberado por causa da tempestade que se aproximava. Essa pessoa voltou mais tarde, morta.

O novo estudo indica que provavelmente houve milhares mais, como Leon, que morreram nas semanas e meses seguintes, mas não foram contados. 

Suas mortes levantam há muito tempo perguntas sobre a maneira e a integridade dos protocolos do governo de Porto Rico para certificar mortes relacionadas a furacões.

O governador Ricardo Rosselló não divulgou imediatamente dados de mortalidade nem as autoridades deram muita informação ao público sobre os processos que as autoridades estavam usando para contar os mortos. 

Mas as autoridades e médicos admitiam em particular que provavelmente havia muitos mais mortos e corpos se empilhando nos necrotérios de toda a ilha. 

Depois de sofrer pressão do Congresso e de análises estatísticas de organizações noticiosas, que situavam o número de mortes acima de mil, Rosselló pediu a ajuda de especialistas da Universidade George Washington para revisar o processo de certificação de óbito do governo. 

Ele prometeu que, "independentemente do que diga a certidão de óbito", cada morte seria inspecionada de perto para garantir uma contagem certa."Isso não são apenas números, são vidas: pessoas reais, deixando para trás seres amados e famílias", disse Rosselló em uma entrevista coletiva no final de fevereiro.

Lynn Goldman, reitora da Escola de Saúde Pública do Instituto Milken, na Universidade George Washington, espera que um relatório inicial seja divulgado nas próximas semanas. 

As conclusões da escola incluirão a primeira tentativa patrocinada pelo governo para que pesquisadores e epidemiologistas quantifiquem a mortandade do furacão Maria. 

Especialistas estão avaliando dados estatísticos de mortalidade e pretendem mergulhar em registros médicos e entrevistas a famílias dos mortos, embora o âmbito e o financiamento da investigação mais profunda ainda não estejam claros, assim como seu momento.

Alguns casos são obviamente relacionados à tempestade, disse Goldman, como alguém que morreu quando um galho de árvore caiu sobre sua cabeça enquanto limpava destroços, ou alguém que sofreu um infarto durante a tempestade e não conseguiu ajuda. 

Mas as certidões de óbito com a frase "causas naturais" exigirão mais investigação. 

O Centro para Jornalismo Investigativo em Porto Rico foi à Justiça na tentativa de conseguir os dados de mortalidade do departamento de saúde e registro demográfico para os meses a partir de novembro, o último ano do qual havia informações disponíveis. 

O Instituto de Estatísticas de Porto Rico também anunciou nas últimas semanas que realizaria uma contagem independente e usaria poderes de intimação judicial para obter os dados. 

O porta-voz Eric Perlloni Alayon disse em um comunicado que o governo continua tentando verificar o número de mortos e não pretende divulgar dados novos. 

Os pesquisadores de Harvard relataram que há vários motivos para que o número de mortos em Porto Rico tenha sido drasticamente subestimado. 

Toda morte relacionada a um desastre, disseram eles, deve ser confirmada pelo instituto de cientistas forenses do governo, que exige que os corpos sejam trazidos a San Juan ou que um perito médico viaje ao município local. E pode ser difícil localizar mortes por um agravamento de condições crônicas devido à tempestade.

Os pesquisadores disseram que o governo de Porto Rico parou de divulgar dados de mortalidade ao público em dezembro de 2017.

"Enquanto os EUA se preparam para sua próxima temporada de furacões, seria crítico rever como as mortes relacionadas a desastres serão contadas, para mobilizar uma operação de reação adequada e responder pelo destino dos afetados", escreveram os autores. 

Muitas famílias daqui esperam esclarecimentos sobre o que aconteceu com seus entes queridos quando "causas naturais" se tornaram a única explicação. 

Era o que estava escrito na certidão de óbito de Leon na manhã em que um policial levou o documento à casa da família. 

Yamil Juarbe, do Departamento de Justiça de Porto Rico, disse em um comunicado que é hábito das autoridades locais nesses casos examinar os corpos em busca de sinais de trauma e falar com os parentes para se inteirar do histórico médico dos falecidos. Essa informação é coletada e enviada ao escritório central do Instituto de Ciências Forenses.

A família de Leon disse que seu nome foi escrito errado na certidão de óbito e sua morte foi atribuída incorretamente a diabetes; eles dizem que ela não tinha qualquer doença crônica conhecida. 

As autoridades depois corrigiram os documentos, mas foi uma de várias indignidades e descasos que a família identificou.

A morte de Leon começou com um vírus, e os primeiros sinais apareceram quando ela entregava doações a famílias de escoteiros que tinham perdido suas casas em outra cidade, Humacao. 

Na semana de Ação de Graças, Leon planejava fazer um banquete para sua família, mas sentiu-se adoentada para terminar o peru. Ela temperou a ave e uma padaria próxima a assou. Então os vômitos e a diarreia a atacaram.

Ela buscou tratamento no Auxilio Mutuo, um hospital particular em San Juan, dos poucos que ficaram abertos durante os cortes de energia, por causa de um gerador. O hospital não perdeu serviços de água e eletricidade, segundo a porta-voz Sofia Luqui, e a instalação de 600 leitos experimentou um volume de pacientes acima do normal depois que vários outros hospitais foram obrigados a fechar.

Leon chegou na tarde de 27 de novembro e esperou horas ao longo da noite, até que um médico lhe disse que tinha diverticulite e prescreveu antibióticos. Leon não foi internada, mas passou aquelas horas presa ao equipamento médico na sala de emergência. 

Na tarde seguinte ela foi mandada para casa com uma prescrição de remédios, mas não melhorou. Às 7h do dia seguinte, Montanez disse que seu pai chamou a família à casa porque Leon estava sem fôlego. Levou 20 minutos para conseguir sinal do celular e ligar para 911 de seu bairro na região metropolitana de Caracas. Levou mais dez minutos, segundo registros, para que a ambulância pudesse chegar à casa de Leon, devido ao congestionamentos e a faróis de trânsito defeituosos. 

Os paramédicos tentaram reanimar Leon usando massagem cardiorrespiratória, mas ela já estava morta quando chegaram. Montanez tentou durante dias que fosse feita uma autópsia, mas ela disse que nenhum órgão do governo ou organização médica privada tinha capacidade para isso.

De acordo com seu desejo, Leon foi cremada alguns dias depois em uma cerimônia apressada porque a casa fúnebre foi danificada pela tempestade e enfrentava um grande número de funerais.

"Ninguém estava preparado. Foi um monstro e todos tivemos de improvisar", disse Victor Torres, gerente-geral da Borinquen Memorial em Caguas. "Mas fizemos o melhor possível." 

Montanez fica acordada muitas noites revendo os últimos dias de sua mãe. Ela tenta lembrar a mulher que muitas vezes brincava de modo tão seco, que seus filhos não sabiam quando ela estava falando sério. 

Ela lembra que Leon deu a cada vizinha um apito para pedir ajuda em uma emergência durante o prolongado blecaute em Porto Rico, e como organizou excursões à luz de lanternas para as crianças do bairro pedirem doces durante o Halloween, depois do furacão.

Mas Montanez pensa principalmente na tempestade. Na escuridão. Na falta de serviços. Deveria ter sido diferente, diz. 

"Tudo falhou. Desde o primeiro dia, tudo estava falho", disse Montanez. "Há muitas histórias como a nossa." 

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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