Holanda tem aumento de eutanásia em pacientes com doenças mentais

Legislação do país europeu não proíbe o procedimento nesses casos, mas assunto divide médicos

Amsterdã

Em 23 de novembro de 2016, Eelco de Gooijer acordou sabendo que aquele seria seu último dia. O paciente de 38 anos sofria de um misto de depressão com traços de autismo.

“Sua existência era mais sobreviver do que viver”, diz a mãe, Monique de Gooijer, em entrevista por telefone de Tilburg, no sul da Holanda. No final da manhã daquela quarta-feira, um médico da Clínica do Fim da Vida injetou-lhe uma droga que o colocou em coma; minutos mais tarde, veio o segundo medicamento, um relaxante muscular que fez o coração de Eelco parar.

“As semanas finais dele, especialmente as duas últimas, foram as melhores da sua vida. Ele sabia que não teria que viver depois daquele dia”, completa Monique. Enquanto recebe a primeira droga, Eelco balbucia: “Isto é muito bom. É exatamente como eu queria.”

Histórias como esta –registrada no documentário “A Dignified Death” (uma morte digna, em tradução livre), que vem sendo exibido na Holanda– exemplificam o atual momento da discussão sobre eutanásia no país.

Cada vez mais, pacientes com transtornos mentais como depressão, bipolaridade, psicose, transtorno obsessivo compulsivo e estresse pós-traumático solicitam o suicídio assistido. “Eelco achava que o sofrimento psicológico deveria ser mais debatido, por isso ele quis fazer o filme. O sofrimento físico pode ser visto, mas o psíquico é mais escondido, embora esteja presente em todos os aspectos da vida de alguém”, afirma Monique.

Segundo dados do RTE, órgão que avalia se os profissionais de saúde agiram corretamente nos casos em que auxiliaram alguém a morrer, a Holanda registrou 83 eutanásias em pacientes psiquiátricos em 2017, um crescimento em relação aos 60 casos de 2016 e mais que o dobro em comparação a 2010 (41).

Os números parecem pequenos em relação ao total de mortes por eutanásia na Holanda –6.585 em 2017–, mas o crescimento chama a atenção.

Para o psiquiatra Johan Huisman, membro do Conselho Médico da ONG NVVE (Sociedade Holandesa pelo Direito de Morrer, na sigla em holandês), dois fatores são responsáveis pelo aumento.

Primeiro, a comunidade médica está cada vez mais aberta em relação ao suicídio assistido de pacientes com distúrbios mentais. O segundo fator é de ordem prática. “Há mais psiquiatras trabalhando para a Clínica do Fim da Vida”, afirma Huisman. Fundada em 2012, a instituição é a responsável pela maioria das eutanásias aplicadas em doentes mentais na Holanda –ano passado, levou a cabo 78% das mortes desse tipo.

A Clínica do Fim da Vida é procurada por pessoas que tiveram os pedidos de eutanásia negados por seus médicos, seja porque eles não quiseram realizar o procedimento ou porque acharam que havia possibilidade de melhora. Por isso, é especializada em casos mais complexos, como condições psíquicas, demência e doenças não-terminais.

Em vigor desde 2002, a lei do Término da Vida Sob Pedido e Ato de Suicídio Assistido estabelece que um paciente pode solicitar a eutanásia a seu médico desde que passe por sofrimento insuportável e que sua enfermidade não tenha prospecto de melhora, uma vez esgotados os tratamentos possíveis. São os “critérios do devido cuidado”, segundo o site do governo.

A legislação não restringe sofrimento insuportável a doenças fisiológicas –como câncer terminal e problemas cardiovasculares, por exemplo.

Isso abriu caminho para que, a partir de 2008, pessoas com distúrbios mentais começassem a exigir os mesmos direitos dos outros pacientes.

Theo Boer, professor de ética na Universidades de Kampen e ex-membro do comitê revisor de eutanásia, vê essa permissividade da lei como uma “falha legal”. Ele explica que, em alguns casos, o “desejo de morte de um paciente psiquiátrico é um sintoma da doença, e pode desaparecer com o tempo”. Além disso, diz que a opção do suicídio assistido pode desencorajar os pacientes a se engajaram em um processo terapêutico.

Recentemente, Boer publicou um artigo defendendo que a legislação seja revista e se torne mais restritiva, incluindo critérios objetivos para a aplicação de eutanásia –como a proximidade da morte, a exigência de cidadania holandesa e o pedido para que o paciente administre as drogas letais em si próprio.

Caminho para legalização na Holanda

1968

J.J. van der Berg publica livro argumentando que a medicina deveria ter a coragem de terminar a vida

1971

Truus Postma, clínica geral de Leeuwarden, aplica eutanásia em sua mãe, a pedido da própria

1973

Sociedade Holandesa pelo Direito de Morrer, de defesa do direito à eutanásia, é fundada em Amsterdã

1985

Acordo entre Estado, Promotoria e Sociedade de Medicina determina que médicos não seriam processados

1998

Sociedade de Psiquiatria publica diretrizes para pedidos de eutanásia de pacientes com distúrbios mentais

2001

Parlamento aprova Lei da Eutanásia, que entra em vigor no ano seguinte; desde então nunca foi alterada

2008

Primeiros dois casos de pacientes com doenças mentais recebendo eutanásia; ambos tinham depressão

2012

Clínica do Fim da Vida é fundada em Haia e vira referência na eutanásia em pacientes psiquiátricos

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