Inspecionar desnuclearização da Coreia do Norte seria dificílimo

Segundo consultora, seriam necessários 273 mil soldados para desmantelar programa atômico

Cinco caixas de texto pretas com letras amarelas mostram diferentes pontos da montanha, que aparece em cinza ao entorno de uma área com vegetação marrom e caminhos em marrom claro
Imagem de satélite obtida por pesquisadores americanos mostram a montanha Punggye-ri, na Coreia do Norte, usada para os testes nucleares no regime de Kim Jong-un - Airbus Defense & Space - 29.abr.18/38 North/Pleiades CNES/Spot Image/Associated Press
David E. Sanger William J. Broad
Washington | The New York Times

Enquanto estuda a possibilidade de negociar o desarmamento nuclear da Coreia do Norte, o presidente dos EUA, Donald Trump, encara um regime que há décadas esconde elementos-chaves de seus programas nucleares dos monitores internacionais e proibiu a entrada de inspetores em seu território.

Por essa razão, o primeiro passo de qualquer acordo significativo será uma declaração da Coreia do Norte sobre a extensão de seu programa nuclear —uma declaração em que ninguém vai acreditar.

A declaração terá que ser seguida pelo que especialistas descrevem como a mais extensa campanha de inspeções na história do desarmamento nuclear, um esforço que terá que mergulhar em um programa que hoje abrange quilômetros quadrados de locais industriais e túneis ocultos no montanhoso norte do país.

E ele pode exigir a participação de mais do que os 300 inspetores que a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) hoje despacha para inspecionar as instalações nucleares de quase 200 países.

Será crucial para Trump conseguir a declaração e o processo de inspeção corretos, em vista de seu argumento de que declarações falsas do Irã teriam prejudicado a legitimidade do acordo nuclear de 2015 com esse país, do qual ele estuda a possibilidade de tirar os Estados Unidos ainda esta semana.

Não há dúvida de que o Irã ocultou boa parte de seu trabalho passado, mas a Coreia do Norte vem ocultando programas de escala muito maior e já formou um arsenal de 20 a 40 ogivas nucleares, contra nenhuma no Irã.

Na realidade, diz a AIEA, as inspeções no Irã vêm sendo realizadas sem percalços nos últimos dois anos, embora sejam um esforço muito menor e comparativamente fácil [do que serão inspeções na Coreia do Norte].

“Comparada com a Coreia do Norte, o Irã pode parecer fácil”, comentou na semana passada o cientista nuclear e ex-secretário do Departamento de Energia Ernest J. Moniz, que negociou muitos dos detalhes do acordo de 2015 durante a administração Obama.

“A Coreia do Norte não será um caso de ‘confie, mas verifique’”, ele disse, emprestando a frase usada por Ronald Reagan em relação às negociações com a União Soviética sobre controle de armas. “Será um caso de ‘desconfie de tudo e verifique, verifique, verifique’.”

De acordo com ex-inspetores de armas, o êxito de um esforço com uma equipe de inspetores pequena na Coreia do Norte dependerá da cooperação plena do líder norte-coreano, Kim Jong-un.

Quatro anos atrás, a RAND Corporation, que frequentemente realiza estudos para o Departamento de Defesa, estimou que podem ser necessários 273 mil militares para localizar e garantir a segurança das armas de destruição em massa da Coreia do Norte no caso de um colapso. É um número de soldados muito superior à força de ocupação americana no Iraque em sua fase de pico.

Como o Irã, a Coreia do Norte teria que iniciar qualquer pacto de desnuclearização apresentando uma lista abrangente de suas instalações, fábricas e armas nucleares, lista essa que as agências de inteligência americanas imediatamente comparariam com suas próprias estimativas.

A complexidade do trabalho de inspeção que se seguiria dependeria da extensão do “desarmamento” que Trump tem em vista –e se ele corresponde à definição feita por Kim,

Todos concordam que um programa de desarmamento envolveria a Coreia do Norte entregar suas armas nucleares. Mas as agências de inteligência dos EUA traçam estimativas muito divergentes quanto às dimensões do arsenal, quer seja a avaliação da CIA, de cerca de 20 armas nucleares, ou a estimativa feita pela Agência de Inteligência do Departamento de Defesa, de cerca de 60 armas. Isso significa que existe a possibilidade de que os inspetores nunca saibam ao certo se encontraram tudo.

A administração Trump não disse ainda se a Coreia do Norte teria que desativar a maioria ou todas suas instalações de produção de combustível nuclear, que se acredita serem muito mais numerosas que as do Irã. Tampouco está claro se a Coreia do Norte teria que abrir mão de seus mísseis.

Acredita-se que a Coreia do Norte também possua grandes estoques de armas biológicas e químicas, como o tipo de gás usado para assassinar o meio-irmão de Kim no ano passado na Malásia.

Mas é o grande complexo nuclear norte-coreano que representa o maior problema. Os inspetores da AIEA não são treinados para reconhecer ou manipular armas nucleares; eles são basicamente contadores forenses que rastreiam o fluxo de urânio e plutônio por fábricas e de equipamentos que podem ser usados para produzir combustível nuclear.

Para retirar as ogivas nucleares norte-coreanas seriam necessários especialistas militares de países nucleares ocidentais —incluindo equipe treinadas para impedir a detonação de armas—, além de possíveis acordos com a China ou a Rússia para receberem as armas.

Mesmo assim, é provável que a AIEA não dê conta da tarefa.

De acordo com o relatório da RAND, especialistas ocidentais avaliam o número total de instalações nucleares da Coreia do Norte (incluindo o centro atômico principal em Yongbyon, o complexo de testes nas montanhas e uma série de laboratórios e instalações secretos) em entre 40 e cem.

A título de comparação, o Irã possui cerca de uma dúzia de instalações importantes e nunca chegou a desenvolver armas nucleares. O Iraque, tampouco.

Essa é apenas uma medida usada para explicar por que a história do desarmamento não inclui paralelos aplicáveis à desnuclearização da Coreia do Norte, disse David A. Kay, especialista nuclear que em 2003 e 2004 liderou a busca dos EUA por armas não convencionais no Iraque.

A meta do desmantelamento nuclear na Coreia do Norte, disse Kay, “é muito mais complexa do que qualquer coisa da qual a administração esteja falando”.

A instalação atômica industrial cobre mais de dez quilômetros quadrados e abrange cerca de 400 prédios. É um labirinto imenso em grande medida desconhecido do mundo externo e que é muito maior que a maioria dos laboratórios de armas dos Estados Unidos.

Pelo menos dois dos prédios contêm reatores, um dos quais produziria o plutônio usado em algumas das bombas atômicas da Coreia do Norte. Especialistas dizem que um grande reator novo está sendo inaugurado no local.

No monte Mantap, um pico de mais de 1.600 metros de altitude, o regime construiu uma rede de túneis profundos para testar suas bombas nucleares. Seis delas já foram testadas.

Especialistas suspeitam que a mais recente, testada em setembro, tenha sido uma bomba de hidrogênio. Há grandes divergências de opinião quanto à possibilidade de a explosão gigante ter inutilizado o local; novas evidências sugerem que a montanha seja capaz de suportar novas rodadas de testes explosivos.

O estudo de 2014 da RAND, conduzido para o Exército americano, imaginou o colapso da Coreia do Norte e uma corrida militar para remover suas armas de destruição em massa e garantir sua segurança.

As estimativas quanto ao número de militares necessários foram baseadas na necessidade de se garantir a segurança das instalações nucleares, além de mísseis de longo alcance, se bem que o estudo também tenha levado em conta as armas químicas e biológicas norte-coreanas.

Além disso, o estudo levou em conta uma gama grande de oposição e hostilidade previstos das forças armadas norte-coreanas. Ele avaliou as tropas americanas necessárias em 73 mil, em uma situação em que não estivesse claro como elas seriam recebidas, ou até 273 mil, no caso de haver resistência ativa. Os EUA mantêm cerca de 28 mil militares na Coreia do Sul.

Kay, que dirigiu a busca dos EUA por armas não convencionais no Iraque, estimou que serão necessários até 300 inspetores de armas na Coreia do Norte. Mas disse que será difícil encontrar um número suficiente de especialistas com os conhecimentos e a experiência necessários.

“Francamente, o pool de talentos tem limites”, ele explicou. “Não vai ser como no Iraque, onde se encontrássemos alguma coisa, a destruiríamos. Será um caso de entrar como observadores do que a Coreia do Norte vai fazer, e isso vai permitir que o número de inspetores seja baixo. Será o caso de olhar por cima dos ombros deles.”

Kay disse que um resultado como esse “provavelmente estaria bom, se o único que você quisesse fosse um Prêmio Nobel da Paz”, ideia saudada por Trump.

Mas não seria o bastante para obter provas concretas de que o país tivesse se livrado de todas suas armas nucleares e os meios complexos para produzi-las.

“Não sei ao certo se é isso o que estão querendo dizer quando falam em desnuclearização”, ele explicou.

Tradução de Clara Allain

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