Joana d'Arc negra é alvo de racismo na França

Escolha de filha de imigrante para representar a padroeira do país gera onda de xenofobia

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Madri

A estudante Mathilde Gamassou, 17, se transformou no domingo passado (29) em uma santa guerreira.

Ela encarnou a heroína Joana d'Arc nas festas que terminam neste domingo (6) em Orleans, no centro da França. Esta é a 589ª edição do evento.

Escolha de filha de imigrante para representar em festival a padroeira do país gera onda de xenofobia em redes sociais
Escolha de filha de imigrante para representar em festival a padroeira do país gera onda de xenofobia em redes sociais - Guillaume Souvant/AFP


É uma honra e tanto no país, do qual Joana d'Arc é padroeira, mas a escolha de Gamassou desencadeou um sem-fim de insultos racistas. De origem africana e polonesa, ela foi chamada de babuíno em postagens em redes sociais. Circularam imagens de bananas, com uma mensagem clara.

Em paralelo, o site islamofóbico Resistência Republicana reclamou em uma de suas manchetes: "No ano que vem, Joana d'Arc vestirá uma burca". A burca é uma espécie de véu islâmico que esconde todo o corpo da mulher, hoje proibido na França caso cubra também seu rosto.

O caso de Gamassou rapidamente se transformou em um debate público, com declarações de apoio vindas de ministros e de ícones culturais.

O Ministério Público decidiu em fevereiro investigar as mensagens de ódio —crime que pode levar a até cinco anos de cadeia na França.

Mesmo Marine Le Pen, do partido ultranacionalista Frente Nacional, defendeu a jovem de origem migrante.

"É uma vergonha. As pessoas deveriam entender que essas festas são celebradas justamente para expressar os valores protegidos por Joana d'Arc."

Gamassou tem dupla origem migrante. Seu pai veio de Benin, na África Ocidental, e sua mãe veio da Polônia.

Ela foi escolhida por um comitê da cidade entre 250 candidatas. Os requisitos eram simples: que fosse estudante, morasse na cidade havia dez anos, seguisse a fé católica e ajudasse outras pessoas em seu tempo livre.

"Para nós, não existe polêmica", disse à Folha Bénédicte Baranger, responsável pelas festas de Joana d'Arc deste ano. "Gamassou cumpre todas as nossas condições, e ser branca não é uma delas."
Ela encantou os jurados pelo espírito vivo e generoso, segundo Baranger, e pela diversidade de interesses. É escoteira, estuda ópera no conservatório e treina esgrima.

A jovem assumiu o papel de Joana d'Arc durante toda a semana, em eventos que incluíram uma cavalgada. O presidente francês, Emmanuel Macron, participou dessas festividades em sua campanha eleitoral de 2017 e se comparou à santa guerreira —entendia a importância daquela figura histórica para o eleitorado conservador.

Joana d'Arc é celebrada na França por ter vencido o cerco britânico à cidade de Orleans em 1429. Queimada viva em 1431, é um dos ícones do país e um dos símbolos mais queridos aos militantes da Frente Nacional, de Marine Le Pen.

A "donzela de Orléans", como é conhecida, serve de exemplo de como os franceses puderam superar uma crise. Santa católica, é também um estandarte de valores tradicionais franceses e de como, para a narrativa do Estado nacional, Deus privilegiou a França.

"Ela é cristã e as pessoas dizem coisas boas sobre ela. Mas, se o governo quisesse respeitar a história, deveria ter escolhido alguém que se parecesse com Joana d'Arc. Ou seja, uma mulher branca", afirma o estudante Valentin, 18, um dos que criticaram a escolha de Gamassou nas redes sociais. Simpatizante da Frente Nacional, ele prefere não revelar o sobrenome.

"O que me choca é que a esquerda francesa se apressou em apontar para Gamassou e dizer 'vejam, ela é negra, isso é multiculturalismo'. Provocaram a extrema direita."

Oliver Bouzy, diretor do museu Casa de Joana d'Arc em Orleans, discorda no entanto da ideia de que, para representar o personagem histórico, a jovem deveria ter a mesma cor de pele da santa guerreira.

"Algumas pessoas sugerem que estamos reescrevendo a história. Mas o que estamos representando são suas características. Gamassou cumpre os requisitos e não vimos razão para exigir dela que fosse branca. Poderia ser também de origem árabe, chinesa ..."

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