Descrição de chapéu Em 1968 França

Legado de 68 é alvo de disputa entre direita e esquerda até hoje na França

Protestos ainda são referência política no país, que discute se eles podem inspirar nova onda

 
Cartazes exibidos em exposição sobre o Maio de 1968 na Escola de Belas Artes de Paris
Cartazes exibidos em exposição sobre o Maio de 1968 na Escola de Belas Artes de Paris - François Mori - 18.abr.18/Associated Press
Daniel Buarque
Paris

Na Paris de maio de 2018, o movimento social que completa 50 anos neste mês é onipresente. São dezenas de livros, cadernos especiais de jornais e revistas, exposições e debates na TV e no rádio tentando discutir o legado de Maio de 68 e seu lugar na história.

Um exemplo são os quatro painéis de cerca de dois metros de altura em exibição no Hôtel de Ville (a Prefeitura de Paris) que reproduzem fotografias de um jovem lançando paralelepípedos contra a polícia na rua Saint-Jacques, no Quartier Latin, em 6 de maio de 1968.

As imagens icônicas do confronto entre jovens e a polícia são parte da exposição de fotografias de Gilles Caron (1939-1970), responsável por alguns dos principais registros daquela ruptura da ordem social francesa.

Mostras como a de Caron tratam o movimento como uma "parada de símbolos" do momento em que a juventude se tornou protagonista da história —o jovem retratado se tornou a figura que exprime a revolta daquele momento.

Nessas exposições e em livros, Maio de 68 é chamado de "história de uma revolução", um "terremoto que revirou tudo: a política, a cultura, a sociedade". "A partir daquele ano, nada mais foi como antes", resume um livro que explica o movimento para crianças francesas.

"Passados 50 anos, Maio de 68 ainda ocupa um lugar muito importante nas representações dos franceses, em suas referências", explicou à Folha Eric Alary, professor de história na Sciences Po e autor do livro "Il y a 50 ans... Mai 68" [Faz 50 anos... Maio de 68, ed. Larousse].

Segundo ele, o movimento continua sendo uma referência política na França e "seu legado é instrumentalizado tanto pela direita como pela esquerda".

A partir dali, explica Alary, as mulheres se conscientizaram de que deveriam e poderiam participar de debates, em todas as arenas; escolas e universidades na França passaram por reformas; houve uma conscientização geral sobre a necessidade de melhorar as condições de trabalho; e surgiram preocupações ambientais.

O legado do movimento de 68 é um grande responsável por "moldar a França" atual, afirma o historiador Olivier Wieviorka, em entrevista à Folha.

Professor da Escola Normal Superior de Cachan, ao sul de Paris, ele explica que o movimento deu espaço a algumas demandas sociais antes ignoradas.

"Os direitos das mulheres (por exemplo, ao aborto), a liberação da moral, a renovação da educação, o desejo de trabalhar de forma diferente na fábrica —aspirações qualitativas, em vez de quantitativas, são os principais legados do Maio de 68 na França", diz.

Wieviorka avalia, entretanto, que o Maio de 1968 não teve um resultado definitivo, e que muito continua sendo conquistado aos poucos até hoje pelos movimentos sociais.

"Pode-se dizer que Maio de 68 não terminou. As mulheres —como o movimento 'me too' [que deu voz a denúncias de assédio] confirma— ainda têm direitos para conquistar. A liberação sexual não foi completa, como evidenciado pelo ostracismo de que gays ainda são vítimas, e a busca por trabalhar sob condições diferentes não acabou subitamente em 31 de dezembro de 1968", elenca o historiador.

A herança positiva do movimento social de 50 anos atrás disputa espaço nas análises de historiadores e comentaristas com a ascensão atual de radicalismos e movimentos extremistas em vários países.

Na França, o partido de extrema-direita Frente Nacional, de Marine Le Pen, tem ganhado força eleitoral —ela perdeu no segundo turno a disputa pela Presidência em 2017, mas a sigla mais tarde foi a terceira mais votada nas eleições legislativas, emplacando oito deputados. Esse robustecimento parece ir contra o que foi defendido nas ruas em Maio de 68.

No contexto atual, tem sido comum na França questionar se os movimentos de há meio século poderiam servir de inspiração a uma nova onda de manifestações por maior liberação.

Há alguns dias, por exemplo, protestos contra o presidente Emmanuel Macron, que completa no próximo dia 14 um ano como ocupante do palácio do Eliseu, levaram milhares de pessoas às ruas de Paris.

Manifestantes em protesto contra políticas econômicas de Emmanuel Macron, em Paris
Manifestantes em protesto contra políticas econômicas de Emmanuel Macron, em Paris - Zakaria Abdelkafi - 5.mai.18/AFP

Para o historiador Wieviorka, entretanto, apesar de muitos movimentos sonharem em repetir Maio de 68, "as diferenças sempre prevalecem sobre as semelhanças".

 

"O movimento de Maio de 68 não pode servir nem como exemplo nem como aspiração, uma vez que o contexto é radicalmente diferente. Não nos esqueçamos de que, na França, esse movimento foi inicialmente realizado pela juventude, por estudante e trabalhadores, de maneira totalmente espontânea. Esse caráter espontâneo torna a imitação particularmente difícil", diz.

Para Alary, Maio de 68 está distante na história, e o extremismo dos dias de hoje é perigoso, mas o sentimento de esperança que dominou 50 anos atrás poderia ajudar a inspirar movimentos contemporâneos a deixar de lado o individualismo e buscar mudanças coletivamente --o que, segundo ele, não está acontecendo.

"Sim, Maio de 68 pode servir de exemplo para lutar contra o radicalismo. O problema é que cada grupo social parece estar lutando por si mesmo. As exigências em 68 eram coletivas e unidas. Hoje em dia, não tenho certeza de que a esperança coletiva seja uma prioridade."

 

Cronologia

22.mar Estudantes ocupam a Universidade de Nanterre, levando à suspensão de suas atividades

3.mai Protesto na Sorbonne faz reitoria convocar a polícia, fechando suas portas. Atos se repetem nos dias subsequentes

10-11.mai Na "noite das barricadas", confronto entre estudantes e policiais atinge pico. Governo responde em tom conciliatório

13.mai Paralisações levam mais de 1 milhão às ruas. Protestos e episódios de violência continuam nos dias seguintes

27.mai Fim das negociações com sindicatos, nas quais governo concede aumentos e benefícios aos trabalhadores

30.mai Em discurso, De Gaulle diz que não sai do cargo, convoca eleições legislativas e afirma que a França está "ameaçada de ditadura" pelo "comunismo totalitário". Apoiadores do presidente saem às ruas de Paris, aos gritos de "De Gaulle não está só" e "Cohn-Bendit em Dachau", em referência ao campo de concentração nazista

23-30.jun Eleições dão ampla vantagem à coalizão liderada por De Gaulle

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.