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Donald Trump Rússia

Medida é golpe duro para Teerã, que enfrenta cerco externo e pressão interna

Regime iraniano enfrenta desafio existencial, o que tem implicação para a paz em todo o mundo

Igor Gielow
São Paulo

A previsível retirada americana do acordo nuclear com o Irã é um golpe duro para o regime de Teerã e, por extensão, para a já falida estabilidade política do Oriente Médio.

Donald Trump faz pronunciamento para anunciar saída de acordo nuclear com o Irã
Donald Trump faz pronunciamento para anunciar saída de acordo nuclear com o Irã - Jonathan Ernst/Reuters

Parece tentador estabelecer um paralelo entre os fatos desta terça (8) e o que Donald Trump fez ao longo do ano passado, quando respondeu à crescente ameaça nuclear da Coreia do Norte ampliando muito o risco de uma guerra de fato acontecer.

Entusiastas do presidente americano dirão que o caminho do confronto é correto, já que o ditador Kim Jong-un aquiesceu e vai se reunir com o próprio Trump. Só que, além de não reconhecer que o americano foi obrigado a aceitar um Kim nuclear e respeitável à mesa, geralmente escapa a eles que o caso iraniano é muito diferente por contexto histórico e mais perigoso, pelos atores envolvidos.

Em um ponto, contudo, há convergência: a pressão, ainda que seja uma promessa anterior de campanha que Trump cumpriu, vem em um momento de expansão da beligerância do regime dos aiatolás.

Devido à equivocada política dos EUA no Iraque e na Síria, os últimos anos assistiram a um fortalecimento de Teerã nos vizinhos. O Hizbullah libanês e em menor medida o Hamas palestino, que lutam por procuração, ganharam musculatura alimentados pelo governo xiita.

Ao aliar-se a Moscou na intervenção que vem salvando a ditadura de Bashar al-Assad na Síria a partir de 2015, Teerã aumentou a presença militar no vizinho. Mais: por meio do Hizbullah, ameaça estabelecer uma segunda frente ao norte de Israel, o que soou os alarmes em Tel Aviv.

Por isso, o Estado judeu passou a atacar abertamente Assad e posições iranianas e do grupo libanês em solo sírio neste ano, algo antes feito de forma discreta.

Para completar, o premiê Binyamin Netanyahu providenciou um dossiê para acusar Teerã de enganar o Ocidente sobre seus desígnios nucleares. A evidência era tênue e hipócrita, já que Israel nunca reconheceu o arsenal atômico do qual dispõe, embora poucos na região duvidem de que os aiatolás tenham meios para ludibriar inspeções externas.

A bola foi colocada para Trump chutar, de todo modo. Ele o fez, o que pode gerar maior agressividade nos movimentos iranianos na Síria e ameaçar um confronto mais direto com Israel.

Ou seja, um cenário caótico. Não só porque os EUA são aliados de Tel Aviv e a Rússia, de Teerã, para ficar no básico, mas também pelo voluntarismo do regime da Arábia Saudita, cuja teocracia do ramo majoritário islâmico sunita abomina os xiitas centrados em Teerã como rivais geopolíticos e religiosos. O reino já sinalizou apoio ao antes inimigo Israel em caso de confusão.

Além dos claros riscos à proverbial paz mundial, fora o dano econômico óbvio pela importância energética do Oriente Médio, o fim do acordo gera mais tensão interna para o regime estabelecido pelo aiatolá Khomeini em 1979.

Nos últimos meses, aumentou vertiginosamente o número de protestos de curdos do Irã. Eles estão economicamente asfixiados pelo fechamento seletivo de fronteiras ao transporte de materiais pesados —Teerã teme, com razão em uma área separatista, a entrada de armas do Iraque.

Há cerca de 80 mil pessoas envolvidas no comércio sem emprego. Além disso, nas últimas semanas um protesto difuso, nacional, começou: notas bancárias começaram a ser rabiscadas e rasgadas.

Teerã reagiu da maneira que pôde, banindo o aplicativo de mensagens Telegram —que é usado por metade dos 80 milhões de iranianos.

Mas o caráter amorfo de insatisfação faz lembrar os atos do começo do ano, notadamente seculares e despojados de lideranças reformistas religiosas em sua essência. Até então, toda onda de protesto contra o poder central preservava o caráter teocrático do regime.

O país enfrenta vários problemas econômicos, com uma inflação na casa dos 10%. Seu PIB vem caindo desde 2012 até em termos nominais: passou de US$ 590 bilhões para menos de US$ 400 bilhões.

A partir de 2016, com o fim das sanções devido ao cumprimento do acordo nuclear, a situação prometia melhorar. Até aqui, os termos só haviam favorecido parte da elite ligada à produção de petróleo, mas havia a esperança de que o efeito transbordasse por toda a sociedade. Não será improvável ver a saída dos EUA ser seguida de sanções contra membros importantes da indústria e do regime, ao estilo do que ocorre contra Moscou.

Com gastos militares em alta devido à aventura na Síria e sofrendo perdas materiais com bombardeios israelenses de alvos que não pode admitir que existem, o governo de Hasan Rowhani deverá ver uma fuga dos poucos investidores que haviam voltado ao país.

Mesmo que outros integrantes do acordo mantenham suas posições, o texto morre sem os EUA. Sob ameaça de asfixia econômica, cercado militarmente e com desafios internos, Teerã pode ter à frente um questionamento existencial ao qual não irá responder sem carregar a região —e talvez o mundo— consigo.

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