Descrição de chapéu The Washington Post Coreia do Norte

Seul culpa novo assessor de Trump por problemas na negociação com Pyongyang

Sul-coreanos dizem que declarações de John Bolton dificultam a relação com a Coreia do Norte

Anna Fifield
Seul | Washington Post

O presidente Donald Trump está culpando Kim Jong-un por mudar o âmbito da cúpula prevista entre os dois líderes em junho e certamente vai dar vazão à sua frustração quando se reunir com o presidente sul-coreano, Moon Jae-in, em Washington nesta terça-feira (22).

Na Coreia do Sul, muitos atribuem os problemas repentinos no processo diplomático a outra pessoaa: John Bolton.

“Há várias minas terrestres no caminho para a cúpula entre Coreia do Norte e EUA”, disse Chung Dong-young, que foi ministro da Unificação durante o último governo progressista e hoje é deputado, falando à rádio YTN. “Uma dessas minas acaba de explodir: John Bolton.”

Woo Sang-ho, deputado do governista Partido Democrático, concordou. “A absurda ‘solução Líbia’ proposta por Bolton funcionou como farol vermelho nas negociações de cúpula da Coreia do Norte com os EUA e a Coreia do Sul”, ele escreveu em post no Facebook.

Pessoas que hoje ocupam cargos seniores na administração Moon conhecem bem o passado político do atual assessor de Segurança Nacional americano. Muitos trabalharam no governo do presidente Roh Moo-hyun, proponente do diálogo com a Coreia do Norte, numa época em que Bolton foi um defensor forte na administração George W. Bush da invasão do Iraque e da mudança de regime na Coreia do Norte.

John Bolton (ao fundo), observa o presidente americano Donald Trump durante reunião na Casa Branca
John Bolton (ao fundo), observa o presidente americano Donald Trump durante reunião na Casa Branca - Saul Loeb - 9.mai.2018/AFP

“Acho que muitas pessoas que atuaram na administração Roh encaram Bolton com preocupação, porque ele era tão neoconservador na época, e parece que ele não mudou”, comentou Lee Geun, professor de ciência política na Universidade Nacional de Seul. “As pessoas receiam que ele interfira e faça o processo descarrilar.”

Não foi possível contatar um representante de Bolton, hoje assessor de Segurança Nacional de Trump, para obter declarações.

Após reuniões com altos funcionários em Seul na semana passada, um analista americano comentou –brincando apenas até certo ponto— que os sul-coreanos detestam Bolton tanto quanto os norte-coreanos.

A visita de Moon a Washington nesta terça-feira foi programada após o encontro positivo dele com Kim no final de abril, e a intenção era que ajudasse Trump a preparar-se para seu próprio encontro com o líder norte-coreano, marcado para 12 de junho em Singapura.

Trump havia reiterado várias vezes que as perspectivas para as negociações eram boas, chegando a dizer que Kim foi “gentil” por ter libertado três reféns americanos detidos na Coreia do Norte havia mais de um ano. Isso até a semana passada, quando a Coreia do Norte deixou claro que não está interessada em “abandono nuclear unilateral” e que vai reavaliar se leva a cúpula adiante, se for essa a condição para sua realização.

Isso se seguiu à participação de Bolton em programas de TV no domingo, 13 de maio, em que elogiou o chamado “modelo Líbia”, no qual o coronel Muammar Gaddafi abriu mão de suas armas nucleares, em 2003, em troca da suspensão de sanções. Mas o regime norte-coreano se recorda do que aconteceu depois disso: Gaddafi foi deposto e morto brutalmente por seus adversários.

Essa menção reiterada da Líbia levou o vice-chanceler norte-coreano Kim Kye-gwan, figura bem conhecida pelas autoridades americanas graças a seu papel nas negociações sobre desnuclearização promovidas em 2005, a criticar Bolton. Ele disse que a Coreia do Norte “não pode ocultar um sentimento de repugnância em relação a” Bolton, que o regime norte-coreano havia descrito anteriormente como “escória humana” e “sanguessuga”.

O jornal pró-Pyongyang publicado no Japão “Chosun Sinbo” reiterou a crítica, dizendo que Bolton, “de linha superdura”, “não tem ideologia ou teoria clara”. “Em lugar disso, é um simples seguidor do pensamento simplista, do racismo e da política bitolada da América em Primeiro Lugar”, segundo o jornal.

Lee Jong-Seok, que foi ministro da Unificação sul-coreano nos últimos anos da administração Roh, disse que os dois lados basearam seu raciocínio em lições diferentes tiradas da Líbia. Bolton enxergou esse país como um caso de desnuclearização bem-sucedida de um regime irresponsável. A Coreia do Norte levou em conta o final sangrento do ditador líbio.

“Bolton criou uma grande confusão ao mencionar o ‘modelo Líbia’, profundamente temido por Pyongyang”, disse Lee, dizendo que na realidade, em vista das circunstâncias, considera a reação de Kim Kye Gwan “moderada”.

“As coisas teriam saído de controle, não fosse pela intervenção imediata do próprio Trump”, disse Lee.

Trump contradisse Bolton, dizendo que não está cogitando de um modelo como o da Líbia –“nós dizimamos esse país”—, mas de um resultado em que, após um acordo de desnuclearização, Kim permanecesse no poder e a economia norte-coreana prosperasse.

Outros procuraram minimizar as preocupações em relação a Bolton, observando que ele mantém contato frequente com seu colega sul-coreano.

“Bolton não me preocupa”, falou o assessor do presidente sul-coreano Moon Chung-in, normalmente muito franco em seus comentários. “Ele fará o que manda o presidente Trump.”

O maior problema, dizem especialistas em Seul, vem da visão fundamentalmente equivocada que Trump tem dos interesses da Coreia do Norte.

O regime de Pyongyang nunca disse que estaria disposto a abrir mão unilateralmente de seu programa nuclear. Em vez disso, deixou claro repetidas vezes que isso teria que ser parte de um “processo sincronizado e em etapas” que envolveria recompensas para a Coreia do Norte ao longo do caminho.

“A participação de Kim Jong-un em uma negociação não constitui um ato de rendição unilateral, mas um movimento para serem acertados e ajustados interesses mútuos”, explicou Lee Jong-Seok, hoje do Instituto Sejong, em Seul, que defende o diálogo com a Coreia do Norte. “Não significa que a Coreia do Norte rejeite uma desnuclearização completa, verificável e irreversível, mas que ela precisa de uma promessa concreta de Washington em troca disso.”

Embora alguns em Seul pensem que administração Trump não compreenda suficientemente a tática de negociação da Coreia do Norte, para outros Trump estaria praticando sua própria “arte da negociação”.

Para Nam Sung-wook, alto funcionário de inteligência sob um governo conservador e hoje professor de estudos norte-coreanos na Korea University, o discurso de Bolton seria um estratagema.

“Trump certamente sabia da posição de linha dura de Bolton quando o contratou, e Bolton agora está fazendo o papel do ‘mau policial’”, disse Nam. “Não acho que o modelo da Líbia tenha sido parte da estratégia de Washington desde o início, mas que foi citado simplesmente para elevar a tensão ao máximo antes da cúpula. Essa é a estratégia de negociação de Trump.”

Seja como for, muitos na Coreia do Norte se preocupam com o que pode acontecer se a cúpula em Singapura não atender às expectativas –ou se produzir um acordo de desnuclearização que a Coreia do Norte não respeite.

Bolton é visto amplamente como sendo a favor da ação militar, como foi ilustrado numa coluna que ele escreveu para o jornal The Wall Street Journal em fevereiro, apresentando os argumentos legais em favor de ataques militares contra Coreia do Norte.

“Muitas pessoas na Coreia do Sul, independentemente de sua orientação política, não gostam de John Bolton”, falou um alto funcionário próximo a Moon, pedindo anonimato para comentar o assunto delicado. “Ele parece pensar que os Estados Unidos podem travar outra guerra na península coreana. Por isso, do nosso ponto de vista, como pessoas que vivemos na península coreana, ele é extremamente perigoso.”

Tradução de Clara Allain

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