Em meio a domínio islâmico, secularismo busca sobrevida na Turquia

Embate entre religião e laicismo está no centro da eleição para a Presidência e o Parlamento

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Duas mulheres com véus islâmicos observam e tocam lenços de diferentes cores em uma banca de um mercado; acima à esquerda há um mostruário com três manequins com véu islâmico azul claro, vermelho e azul escuro, acima de uma placa com o preço de 10 liras turcas.
Mulheres muçulmanas olham lenços à venda em um mercado de Esmirna, na Turquia - Ian Cheibub/Folhapress
Esmirna

Famílias se espalham pela grama de um parque de Esmirna no entardecer da quarta-feira (20). Enquanto observam o mar nesta cidade do oeste da Turquia, são vigiadas por um enorme cartaz com a silhueta de Mustafa Kemal Atatürk, dito pai da República turca.

Ele é um dos ícones do país. À noite, o contorno de seu retrato é iluminado. Mas, em algumas esferas, a Turquia que vai às urnas neste domingo (24) se parece pouco com aquela que o fundador idealizou. Um exemplo é a religião.

A interseção entre fé e política será um dos assuntos centrais dessa eleição, em que turcos votam para presidente e para o Parlamento. O atual mandatário, Recep Tayyip Erdogan, e seus aliados devem vencer, mas com dificuldade.

Atatürk (1881-1938) promoveu uma separação brusca entre religião e Estado quando instituiu sua república em 1923, em um país que até então era a sede dos califas. Ele substituiu a "sharia" (a lei islâmica) por códigos civis baseados nas leis europeias.

Essas ideias, que por algum tempo dominaram a política turca, foram aos poucos desmontadas pelo governo do AKP (Partido Justiça e Desenvolvimento), de Erdogan. Priemiê de 2003 a 2014, ele defende que a Turquia abrace sua identidade islâmica.

Assim, encarna um setor conservador bastante diferente do de Atatürk. Seu partido é o sucessor de um movimento político que foi desmantelado pelo governo devido a seu ativismo religioso.

Erdogan voltou a permitir o uso do véu em cargos públicos e no Exército, por exemplo, e organizou rezas cerimoniais dentro de seu próprio palácio, algo inédito na república.

Sua nova frente é o fomento a escolas religiosas, cujo número saltou de 450 a 4.500 durante os 15 anos de seu mandato (como premiê e presidente). O orçamento destinado à educação religiosa foi turbinado neste ano em 68%.

Esses planos incomodam em especial os moradores de Esmirna, o bastião secular do país. Nessa cidade, a maior depois de Istambul e Ancara, a força de oposição CHP (Partido Republicano do Povo) teve, em 2015, 47% dos votos, o dobro da média nacional.

Tamanha é a importância desse eleitorado —há 4,2 milhões de habitantes, em um país de quase 80 milhões— que o presidente Erdogan começou ali a sua campanha.

"Com tanto investimento na educação religiosa, há cada vez menos espaço nas escolas seculares", diz um morador de Esmirna chamado Erdogan, como o presidente. Ele não dá seu sobrenome.

"Já não sei se minha filha vai conseguir se matricular em uma escola pública secular, pois estão todas lotadas", afirma. "Mas não quero que estude em uma escola religiosa. Ela tem só 14 anos."

Essa não é a única mudança que ele viu na última década. Ficou mais difícil comprar cerveja, por exemplo, com as crescentes restrições deste governo —o que o convenceu a votar em Muharrem Ince, do CHP, para presidente.

Segundo sondagem feita de 13 de junho com 2.460 pessoas, Erdogan terá 44,5% dos votos, enquanto Ince, só 29%.

O comerciante Mose Sadi, 62, concorda com as críticas à educação islâmica. "O governo tem investido nas escolas religiosas, onde os alunos só estudam coisas antigas. Temos que pensar mais no futuro, na ciência", diz. Judeus, seus antepassados vieram de Portugal há séculos fugindo da perseguição religiosa.

O embate entre secularismo e religião, no entanto, não tem soluções fáceis. Apesar do rechaço de segmentos mais seculares, a retórica islâmica ainda goza de amplo apoio.

Atatürk é de fato idolatrado no país, e seus retratos enfeitam a paisagem urbana, mas a maneira como ele promoveu o secularismo é questionada.

A narrativa de Erdogan é a de que os religiosos foram marginalizados pelos criadores da república. Esperaram até seu mandato para ser ouvidos.

"Para mim, o melhor de todos é Deus", diz Levant Çelik, 45, no parque público de Esmirna. "Mas, depois dele, eu voto em Erdogan."

Dündar Tanriverdi, 65, secretário-geral em Esmirna do partido pró-secularismo IYI, discorda. "A visão secular de Atatürk não era a de viver sem religião, mas a de separar a religião da política", diz Tanriverdi, criticando o presidente Erdogan. "Um governo não pode ter uma crença, mas um povo, sim."

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