Escândalo fiscal esgota forças da África do Sul

Investigações de corrupção envolvem ex-presidente Jacob Zuma e empresa de auditoria

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Sede da KPMG em Capa Town, na África do Sul, que investiga caso de corrupção no país no qual a empresa é alvo de investigações
Sede da KPMG em Capa Town, na África do Sul, que investiga caso de corrupção no país no qual a empresa é alvo de investigações - Mike Hutchings - 19.set.2017/Reuters
Selam Gebrekidan Norimitsu Onishi
Pretória (África do Sul) | New York Times News Service

O chefe dos impostos da África do Sul se endureceu. Suplicar ao presidente Jacob Zuma que declarasse seus impostos sempre foi uma tarefa intensamente dolorosa --quanto mais fazê-lo pagar a quantia devida.

E a coisa só foi piorando. Um dos filhos do presidente, um sobrinho e inúmeros parceiros nos negócios também tiveram sérios problemas fiscais, segundo quatro ex-autoridades, alarmando os investidores e fazendo-os perguntar o que fazer.

A jovem democracia sul-africana depende da fé --e dos impostos-- de sua população desde o fim do apartheid, portanto os riscos eram evidentes. Se o líder do CNA (Congresso Nacional Africano), seus parentes e seus influentes aliados podiam escapar desse dever, o resto do país também poderia se recusar, esvaziando a capacidade do governo de funcionar no nível mais básico.

O ex-comissário de impostos, Ivan Pillay, disse que tentou ser discreto, visitando o presidente várias vezes entre 2012 e 2014 para incentivá-lo a cumprir sua obrigação.

"Se eu estiver atrapalhando, basta me dizer que eu irei embora", disse Pillay em uma rara entrevista, lembrando suas conversas com Zuma. "Não vou gostar, mas irei embora. Sou um membro disciplinado do CNA."

O ex-presidente Jacob Zuma discursa em manifestação em seu apoio, em Durban, onde foi ouvido pela Justiça em caso que apura corrupção na África do Sul
O ex-presidente Jacob Zuma discursa em manifestação em seu apoio, em Durban, onde foi ouvido pela Justiça em caso que apura corrupção na África do Sul - Gianluigi Guercia - 8.jun.2018/AFP

Zuma objetou, dizendo que não havia necessidade de se demitir, segundo Pillay. O presidente cuidou pessoalmente do assunto alguns meses depois: de repente substituiu Pillay por um de seus seguidores fiéis, que comandou um amplo expurgo no órgão, provocando um escândalo nacional que ameaça a África do Sul de maneiras inesperadas.

Usando uma enxurrada de reportagens fictícias na mídia e afirmações abalizadas de uma das maiores firmas de auditoria do mundo, a KPMG, Zuma conseguiu evitar o escrutínio de seus impostos, dos negócios de sua família e das finanças de seus aliados, segundo Pillay e três outras ex-autoridades que confirmaram o relato. 

Então o presidente e seus apoiadores foram ainda mais longe. Usaram a comoção no órgão fiscal para adquirir maior controle do Tesouro Nacional, tornando-se ainda mais ricos a um custo enorme para o país, segundo as autoridades do governo que agora tentam reparar os danos.

O órgão nacional de impostos havia sido uma vitória extraordinária, mesmo para o partido que ajudou a derrotar o apartheid. Apenas alguns anos depois que ajudou a implantar a democracia, o CNA mudou da libertação para as atividades mundanas do governo e convenceu milhões de sul-africanos a fazer o inimaginável: pagar seus impostos.

Em um termômetro do apoio ao novo governo, a arrecadação de impostos aumentou ano após ano, e finalmente ultrapassou algumas referências de democracias muito mais ricas e estabelecidas, incluindo os EUA. O órgão combativo, o Serviço da Receita Sul-Africano, ganhou aplausos do Banco Mundial, da Universidade Princeton e outras entidades seletas do mundo.

"Era a joia da coroa do Estado", disse Dennis Davis, um juiz da Suprema Corte que conduziu uma recente revisão do sistema fiscal e participou de um painel em meados dos anos 1990 para ajudar Nelson Mandela a criar a nova agência de impostos.

"O que aconteceu depois", acrescentou ele, "é uma história muito triste e séria." 

A versão sul-africana da Receita Federal talvez seja o cenário improvável para uma saga nacional que envolve espiões, amantes rejeitadas, bordéis secretos, agentes duplos e um dos maiores escândalos jornalísticos da era pós-apartheid.

Mas a história mostra que o CNA cada vez mais corrupto minou seu próprio sucesso traindo a população que o levou ao poder. 

O presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, em evento no estádio Orlando, em Soweto
O presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, em evento no estádio Orlando, em Soweto - Gulshan Khan/AFP

E o drama está longe de terminar. Na África do Sul de hoje --que oscila precariamente entre facções adversárias no CNA--, o novo presidente do país, Cyril Ramaphosa, está lutando para afirmar sua autoridade e cumprir a promessa de extirpar a corrupção. Hoje ele está metido numa briga confusa para libertar o órgão do legado de seu antecessor, Zuma, e reconquistar a confiança de um país nervoso.

Com a corrupção e a guerra política esgotando a agência, cada vez mais sul-africanos simplesmente pararam de pagar impostos, uma decisão perigosa em um país onde dezenas de milhões de pessoas dependem dos serviços do governo que são prejudicados por desvios e fraudes. Aos olhos de muitos especialistas, a capacidade do governo --e do país-- de se corrigir está ameaçada.

O desmanche do órgão fiscal se desenrolou à plena vista do país incrédulo, dissipando a confiança do público de tal modo que hoje as autoridades se perguntam como poderão restaurá-la.

Quando Zuma demitiu Pillay do cargo de comissário, no final de 2014, instalou um aliado que era próximo do presidente e de sua família havia décadas. Quase imediatamente, vazamentos explosivos começaram a surgir de dentro do órgão, apimentando as páginas de um grande jornal sul-africano.

As reportagens diziam que Pillay tinha aprovado a criação de uma "unidade vigarista" ilegal que tinha grampeado a casa de Zuma para interceptar suas conversas.

As notícias ficavam mais suculentas a cada semana: um ex-espião durante o apartheid recebeu dinheiro para manter silêncio sobre a espionagem ilegal. A unidade vigarista montou até um bordel para agir às escondidas, afirmavam as reportagens.

Conforme surgiram os detalhes chocantes, o novo comissário fiscal de Zuma, Tom Moyane, chamou a KPMG para investigar, dando-lhe um contrato de quase US$ 2 milhões para revelar a verdade. Um ano depois, a KPMG voltou com os resultados, confirmando abusos de poder generalizados.

O problema é que não está claro se alguma coisa disso foi verdade. 

O jornal The Sunday Times mais tarde desmentiu seus artigos. A KPMG também foi obrigada a refutar publicamente suas próprias conclusões, admitindo que havia basicamente copiado um memorando dos advogados de seu cliente e transmitido as denúncias como suas próprias conclusões, plenamente investigadas.

"Quem paga ao músico pede a canção, infelizmente", disse Bobby Johnston, ex-presidente da Bolsa de Valores de Johannesburgo e que faz parte de um grupo que investiga a KPMG.

As retratações vieram tarde demais para a agência fiscal. Pillay e líderes da "unidade vigarista" haviam se demitido ou foram forçados a sair, reduzindo a capacidade do órgão de investigar e processar os que não pagam impostos, segundo autoridades e peritos independentes.

Manifestantes protestam em Durban, em apoio ao ex-presidente Jacob Zuma
Manifestantes protestam em Durban, em apoio ao ex-presidente Jacob Zuma - Gianluigi Guercia - 8.jun.2018/AFP

Ainda mais prejudiciais, as histórias lúbricas de corrupção e intriga dentro do CNA, que havia sido um exemplo de boa governança, contribuíram para acentuar a queda na arrecadação fiscal do país: mais de US$ 6 bilhões a menos do que o governo havia esperado nos dois anos fiscais anteriores.

A redução deixou o país com menos recursos para enfrentar suas necessidades mais prementes --habitação, educação, saúde-- em uma sociedade que se tornou ainda mais desigual sob o CNA.

Em um golpe terrível contra os sul-africanos mais pobres que votaram no partido e o mantêm no poder há décadas, as lacunas obrigaram o governo a aumentar o imposto de valor agregado sobre produtos pela primeira vez desde o fim do apartheid. A medida deverá prejudicar principalmente a população pobre. 

Grande parte da revolta nacional sobre o escândalo se concentrou na KPMG, que promoveu o caos ao apresentar acusações explosivas que não podia comprovar. Agora a firma enfrenta o colapso na África do Sul, levantando perguntas devastadoras sobre o papel das empresas ocidentais em fornecer um verniz de legitimidade enquanto permitem a corrupção. 

A KPMG enfrenta dois inquéritos na África do Sul, e há algumas semanas o auditor-geral do país encerrou todos os contratos com a empresa. 

Mas o destino do órgão fiscal continua no ar. É apenas uma de muitas instituições do governo que foram enfraquecidas ao longo de anos de lutas internas e corrupção no partido que as construiu. O CNA desgastou especialmente órgãos e cargos que exigem prestação de contas dos poderosos, como a polícia nacional, os promotores e o defensor público.

Mas a queda do serviço de impostos foi tão perigosa que Ramaphosa, imediatamente depois de assumir a Presidência, em fevereiro, prometeu salvar a agência. Ele suspendeu Moyane, embora a dura luta pública para demiti-lo ainda esteja em curso. 

O gabinete da Presidência acusou Moyane de interferir no inquérito da KPMG, enganando o Parlamento e deixando de investigar adequadamente denúncias de corrupção, lavagem de dinheiro e evasão fiscal de seu próprio vice --acusações que Moyane está se preparando para refutar no tribunal. 

"A tragédia é que a receita sul-africana era uma instituição de nível internacional", disse Ismail Momoniat, vice-diretor para impostos e política financeira do Tesouro Nacional. "A coleta de impostos é muito crítica para a construção da nação, porque é um alicerce do Estado."

 

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves  

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.