Relatório da ONU exclui detalhes mais fortes sobre ataque químico sírio

Comissão diz que versão inicial precisa de mais provas e que futuro texto pode incluir análise

Bebê com máscara de oxigênio após suposto ataque ataque químico sírio em Douma
Bebê com máscara de oxigênio após suposto ataque ataque químico sírio em Douma - Hasan Mohamed - 22.jan.2018/AFP
Rick Gladstone Maggie Haberman
New York Times News Service

Pelo menos duas vezes este ano, as Forças Armadas sírias dispararam granadas de artilharia fabricadas no Irã e contendo uma substância semelhante ao cloro, que expelia veneno lentamente e dava as vítimas apenas alguns minutos para escapar.

Em outro ataque, forças sírias lançaram uma bomba química contra o terraço no último andar de um edifício de apartamentos, causando a morte de 49 pessoas, entre elas 11 crianças. A pele das vítimas ficou azul.

Esses e outros detalhes que incriminam a Síria por atrocidades em Ghouta Oriental, um subúrbio de Damasco, foram descobertos por uma comissão das Nações Unidas que está investigando possíveis crimes de guerra no conflito iniciado sírio sete anos atrás. Mas quando a comissão divulgou seu relatório, na quarta-feira (20), esses detalhes foram omitidos.

Sete páginas que faziam parte de uma versão anterior do texto, fornecida ao New York Times, foram resumidas em dois parágrafos na versão final do texto.

O relatório da comissão examinava de que maneira o governo do ditador Bashar al-Assad recapturou Ghouta Oriental, um baluarte rebelde perto da capital, nos quatro primeiros meses de 2018. As forças de Assad sitiaram a área e recorreram a bombardeios, armas químicas e restrição da entrada de alimentos, causando uma onda de fome.

O conteúdo do texto inicial vazado para o jornal pintava um retrato muito mais assustador do que fora divulgado anteriormente sobre as armas químicas usadas em Ghouta Oriental. E afirmava inequivocamente que as forças sírias e seus aliados eram responsáveis pelo ataque, refutando as repetidas negativas do governo Assad e de seus aliados na Rússia e Irã.

Um membro da comissão explicou as omissões, afirmando que muitos dos detalhes da versão original do texto requeriam corroboração adicional e poderiam a vir ser incluídos em um novo relatório, que talvez seja publicado em setembro. 

Não houve pressão externa para que quaisquer informações fossem excluídas, disse o membro da comissão, Hanny Megally, advogado egípcio especializado em questões de direitos humanos.

“Acreditávamos que mais trabalho era necessário quanto a isso; a investigação prossegue”, ele disse. “Por isso decidimos divulgar uma versão mais curta.”

Mas as conclusões contidas na versão omitida pareciam incontestáveis.

A versão vazada afirmava: “Em um dos padrões de ataque mais sinistros documentados no período em revisão, forças do governo e/ou milícias afiliadas continuaram a usar armas químicas contra áreas densamente povoadas em toda a região de Ghouta Oriental”.

O texto enumerava em detalhes meticulosos seis ataques com armas químicas contra civis, de janeiro a 7 de abril, a data do mais mortífero desses ataques. E o texto criava um precedente ao implicar o Irã no fornecimento de armas.

Em ataques realizados em 13 e 22 de janeiro e em 1º de fevereiro, o texto afirmava, forças do governo dispararam agentes químicos, “mais provavelmente cloro”, contra uma porção residencial do bairro de Douma, em Ghouta Oriental, perto de um estádio esportivo a cerca de 700 metros da linha de frente, entre as 5h e as 6h30min.

Algumas testemunhas descreveram “um agente de ação lenta” com cheiro semelhante ao do cloro, segundo o texto original, e elas tiveram tempo para “despertar as vítimas, obter panos molhados para servir como máscaras improvisadas, e para conduzir a evacuação das áreas atacadas”.

Nos ataques de 22 de janeiro de 1º de fevereiro, o texto afirmava, a comissão obteve provas que identificavam o sistema usado para lançar o ataque como um foguete de artilharia produzido industrialmente no Irã, “ao que se sabe usado exclusivamente por forças do governo e milícias a ela afiliadas”.

“Com relação às munições usadas em 22 de janeiro e 1º de fevereiro, a comissão obteve e avaliou provas materiais, entre as quais análises de metadados, e identificou o uso de um foguete artesanal terra-terra [IRAM, na sigla em inglês]. Embora IRAMs tenham sido empregados por diversos dos envolvidos no conflito da Síria, o modelo específico observado durante esses dois ataques ao que se sabe só foi usado por forças do governo e, raramente, por milícias a elas afiliadas. Mais especificamente, os IRAMs documentados foram construídos em tornos de foguetes de artilharia iranianos produzidos industrialmente, que se sabe terem sido fornecidos às forças do governo sírio.”

O texto original afirmava que os ataques a Ghouta Oriental seguiram “um padrão previamente documentado pela comissão quanto ao uso de armas químicas por forças do governo”, e que nenhum deles havia indicado “o envolvimento de grupos armados”.

Nos primeiros três ataques, 31 pessoas, entre as quais crianças, adoeceram, mas ninguém morreu. Dois outros episódios de possível uso de cloro, em 25 de fevereiro e 7 de março, causaram baixas maiores, com a morte de duas crianças (uma das quais pequena) e ferimentos em 18 civis.

O pior ainda estava por vir, depois do colapso das negociações entre representantes das forças armadas russas e um grupo insurgente, o Jaish al-Islam, para a evacuação do bairro de Douma e o fim do cerco. Em 7 de abril, o texto original afirmava, um dispositivo explosivo improvisado, lançado de um avião, atingiu um edifício residencial a cerca de 180 metros do Hospital Rif Damasco, o último que estava funcionando em Douma.

O texto descrevia o explosivo como “um único cilindro de gás industrial”, com aletas, que atingiu o terraço no topo do edifício e teria “liberado rapidamente um grande volume da substância que continha nas áreas interiores do edifício de apartamentos”.

“As posturas e os sintomas físicos das vítimas do ataque sustentam as declarações de vítimas de que o agente entrou em ação rapidamente”, segundo o documento, e de que “isso provavelmente indica que uma pesada concentração do composto químico desceu pelo edifício”.

Com base em relatos de testemunhas e “provas materiais recebidas e analisadas pela comissão”, o texto afirmava, os mortos mostravam “diversos sintomas compatíveis com exposição a um agente sufocante, entre as quais sinais de espuma na boca e nariz, pele azul, indicativa de problemas na circulação de sangue, meiose [constrição das pupilas] e alguns casos de dilatação de pupilas”.

“Declarações e provas materiais recebidas e analisadas pela comissão com relação às vítimas fatais dentro do edifício de apartamentos revelam um conjunto de sintomas compatíveis com a exposição a um agente sufocante, entre as quais sinais de espuma na boca e nariz, pele azul, indicativa de problemas na circulação de sangue, meiose (constrição das pupilas) e alguns casos de dilatação de pupilas. Numerosas vítimas incapazes de fugir do edifício entraram em colapso pouco depois da exposição ao agente.”

Megally se recusou a entrar em detalhes sobre os motivos para que essa informação tenha sido excluída do relatório publicado na quarta-feira. Mas ele disse que, no caso específico do ataque de 7 de abril, havia necessidade de mais informações, entre as quais a causa de morte das 49 vítimas.

“Se não estamos seguros quanto à causa da morte, podemos estar olhando no lugar errado”, ele disse. “É melhor concluirmos a investigação do que divulgarmos detalhes aos pedaços.”

A versão oficial do relatório foi muito mais cautelosa sobre os incidentes com armas químicas em questão. 

Quanto a dois dos ataques, por exemplo, o relatório afirma que “a comissão não foi capaz de obter provas materiais suficientes para identificar de modo conclusivo os sistemas usados para transportar as armas ao alvo”.

Embora as circunstâncias do ataque de 7 de abril tenham sido consideradas como “em geral fortemente compatíveis com o uso de cloro”, afirmou o texto final, os sintomas eram mais compatíveis com o uso de “outro agente químico, talvez um agente dos nervos”.

A versão oficial também condenou as forças rebeldes pelo uso indiscriminado de artilharia contra áreas civis.

A comissão, que vem compilando provas de atrocidades no conflito da Síria desde pouco depois que a guerra começou, em 2011, desenvolveu muitas formas de recolher informações, mesmo que Assad não tenha autorizado a operação de seus investigadores no país. 

Comandada por Paulo Sérgio Pinheiro, diplomata e ativista dos direitos humanos brasileiro, a comissão chegou a compilar uma lista confidencial de funcionários do governo sírio, e outros, que um dia poderão ser responsabilizados judicialmente pelos seus atos.

A versão anterior do relatório sobre Ghouta Oriental foi divulgada por uma pessoa próxima à comissão, que foi consultada sobre o relatório e pediu que seu nome não fosse mencionado.

O vazamento sugere alguma dissensão interna na comissão sobre a qualidade de suas provas quanto ao uso de armas químicas pelo governo sírio em Ghouta Oriental. 

Também é possível que a comissão tenha desejado exercer cautela, antes da divulgação, aguardada para breve, de um relatório sobre o ataque de 7 de abril em Ghouta Oriental, pela Organização pela Proibição de Armas Químicas, que enviou investigadores ao local.

O uso de armas químicas foi proibido por um tratado internacional que Assad assinou sob pressão internacional em 2013, quando seu governo foi acusado pela primeira vez de ter usado armas químicas no conflito —também em Ghouta Oriental.

O ataque de 7 de abril em Douma causou indignação internacional generalizada, especialmente porque vídeos divulgados por testemunhas e ativistas mostraram vítimas, entre as quais crianças que foram filmadas e fotografadas enquanto sufocavam sob o efeito do agente químico. 

O ataque gerou medidas retaliatórias, com ataques aéreos e de mísseis lançados por Reino Unido, França e Estados Unidos.

O governo de Assad, apoiado pela Rússia e pelo Irã, tentou lançar dúvida sobre a proveniência do ataque contra Douma, sugerindo que ele pudesse ser falso que tivesse sido executado por insurgentes.

O governo sírio e seus aliados tomaram o controle de Ghouta Oriental dois meses atrás, depois de conduzir o que a comissão classifica como “o mais longo cerco da história moderna”: 140 mil pessoas foram forçadas a deixar suas casas, e os bombardeios que a região sofreu durante o cerco destruíram hospitais, mercados e escolas, e forçaram os moradores restantes a viver em porões e adegas.

Os bombardeios —em sua maioria executados por aviões russos e sírios— causaram a morte de 1.100 civis e feriram outros 4.000, em um período de 30 dias iniciado em 18 de fevereiro, afirmou a comissão em seu relatório, que será entregue ao Conselho de Direitos Humanos da ONU na semana que vem.

Dezenas de milhares das pessoas que fugiram da área continuam detidas ilegalmente pelo governo, que adotou uma política de internação generalizada que a comissão definiu como “repreensível”.

As leis humanitárias internacionais permitem operações de cerco. Mas, abandonando as práticas estabelecidas, o painel disse que considerava ilegal a maneira pela qual as forças pró-governo conduziram o sítio de Ghouta Oriental.

“Certos atos perpetrados pelas forças pró-governo durante o cerco contra Ghouta Oriental, entre os quais submeter a população civil a fome deliberada como método de guerra, representam crime contra a humanidade ou atos desumanos, causadores de sofrimento mental e físico grave”, a comissão concluiu.

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