Aliança populista entre partido antissistema e radicais de direita confunde italianos

Coalizão heterodoxa no governo da Itália cria novo tipo de polarização

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Roma

​Todos os caminhos levam a Roma, mas nenhum deles parece indicar aos italianos o rumo do país após a ascensão do premiê Giuseppe Conte, há um mês. É inédito, afinal, que a Itália —a terceira maior economia da zona do euro— seja governada por uma aliança de partidos populistas com aversão à Europa.

A sigla ultranacionalista Liga e o movimento antissistema 5 Estrelas receberam, somados, 50% dos votos na eleição de 4 de março e puderam por fim formar seu governo após longas negociações.

Com isso, criaram uma nova divisão na sociedade italiana, exacerbando os ânimos em uma polarização não muito diferente daquela vivida no Brasil, que em outubro elege seu próximo presidente.

“A nova clivagem não é mais entre a direita e a esquerda, como era antes, e sim entre os partidos favoráveis ao sistema e aqueles contrários a ele”, diz à Folha o cientista político Raffaele de Mucci, da Universidade Guido Carli.

A situação é ainda mais complicada porque, apesar de o novo governo ter recebido a maioria dos votos, quase 30% dos eleitores não foram até as urnas. “Eu me pergunto qual é de fato a maioria neste país.”

Os movimentos populistas, que têm ganhado espaço na Europa, promovem um discurso em comum de “nós” contra “eles”. Por isso, como sugere Mucci, italianos têm se dividido em novas categorias.

De um lado ficam as classes mais altas, os intelectuais e os partidários da União Europeia. Do outro, os excluídos do sistema financeiro e os que se opõem à migração.

Para o segundo grupo, “a Europa é apenas uma expressão geográfica, talvez um pouco mais”, afirma o professor.

Nesse sentido, o engenheiro eletrônico Simone Bruno, 29, rejeita veementemente o governo da aliança entre Liga e 5 Estrelas. “Eles não entendem a importância de estarmos unidos com as outras nações europeias”, diz, em Roma.

“Não gosto disso. Tenho a mente aberta, viajei, estudei fora. Eles estão investindo em um futuro que não será bom para a minha geração, e isso é simplesmente errado.”

A estudante Benedetta Servizi, 21, concorda. Quando a reportagem lhe pergunta o que pensa do novo governo, ela torce o nariz. “Não estou tão feliz, não. Eles não respeitam aquilo em que eu acredito, como a imigração e os direitos das mulheres.”

Existe hoje, afirma, uma marcada divisão social no país. Os descontentes com o novo governo, como ela, não se veem no Parlamento atual, no qual a esquerda tem uma presença frágil e desarticulada.

Na Câmara dos Deputados, o governo da Liga com o 5 Estrelas tem 347 assentos do total de 630. O Partido Democrático, de centro-esquerda, tem apenas 111. A Força Itália, de centro-direita, tem 104.

Por outro lado, com o governo ainda em seu primeiro mês, mesmo a oposição tem aguardado para saber o que, afinal, criticar.

“Houve uma anomalia nas eleições com uma consequência imprevista”, diz Mucci. “Mas talvez o sentimento prevalente seja o de espera. Uma mistura de curiosidade e medo em relação ao que este governo pode fazer.”

É a opinião do motorista Paolo Andreoletti, 52, que está satisfeito com a gestão antissistema e eurocética.
“Faz poucos dias que começaram a governar, e acho que podem ser bons. São jovens, têm ideias de futuro, não vêm da velha escola mafiosa... Agora vão finalmente privilegiar o cidadão italiano”, afirma.

Andreoletti, que deixou seu trabalho como carpinteiro devido à competição com produtos vindos de outros países europeus, espera agora que o governo cumpra suas promessas e melhore a economia, que passa por anos ruins (deve crescer 1,6% em 2018).

“Quanto aos políticos das antigas, quero que todos sumam. Destruíram o país!”, diz batendo uma mão sobre a outra com força, enquanto sorri.

Governo populista ameniza discurso antieuro

Quando o premiê Giuseppe Conte assumiu as rédeas da Itália, os vizinhos temeram que ele levasse a carroça para fora da União Europeia, pondo em risco todo o bloco.

Seu governo, afinal, é formado por dois partidos críticos à integração regional.

A saída italiana, no entanto, parece por ora bastante improvável. Pesquisa feita pelo instituto Piepoli indica que 72% dos italianos querem permanecer na zona do euro, onde circula a moeda comum. Só 23% desejam deixá-la.

O levantamento foi feito com 505 pessoas em 29 de maio. A empresa não informou a margem de erro.
A Itália, membro-fundador da União Europeia, indica que não quer seguir o Reino Unido, que se divorcia em 2019.

Ciente disso, tanto a Liga quanto o 5 Estrelas —os aliados no governo— suavizam o discurso eurocético e dizem não ter a intenção de romper com a unidade europeia.

Segundo declaração recente do ministro da Economia, Giovanni Tria, ao Corriere della Sera, a nova gestão é “clara e unânime” na decisão de manter o país no euro. “Não estamos discutindo nenhuma proposta de deixá-la.”

Apesar desse primeiro alívio para os parceiros na União Europeia, a Itália ainda não deixou de ser vista como uma ameaça à integração do bloco.

Há o receio, por exemplo, de que a Liga e o 5 Estrelas voltem a cogitar um plebiscito para retirar o país da união se nos próximos anos suas políticas econômicas não derem resultados —algo esperado pelos economistas, já que os dois partidos propuseram uma série de programas sociais sem verba para custeá-los.

A tarefa do ministro Tria será dura em um país onde a dívida pública bate em 130% do PIB (Produto Interno Bruto).

Tria era, ademais, a segunda opção para a pasta. O governo da Liga e do 5 Estrelas havia proposto inicialmente o eurocético Paolo Savona. Mas, de tão avesso ao euro, ele foi barrado pelo presidente italiano, Sergio Mattarella.

“A Itália é grande o suficiente, com economistas bons e criativos o bastante para lidar com uma saída de fato, estabelecendo um duplo sistema monetário que poderia recuperar a prosperidade”, escreveu Joseph Stiglitz, Nobel da Economia e crítico ao euro. Se isso acontecer, afirmou, a zona do euro será deixada em frangalhos.

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