Alegações de corrupção sob os Kirchner detonam onda de delações na Argentina

Acusações começaram com publicação de anotações de ex-motorista do governo por jornal

Buenos Aires

Políticos, empresários e jornalistas argentinos mergulharam em um frenesi dignos de thriller de suspense desde que, no último dia 1º, o jornal La Nación passou a divulgar cópias de cadernos de anotações de um ex-motorista da gestão Néstor e Cristina Kirchner (2003-2017).

O motorista Oscar Centeno repassou ao jornal manuscritos detalhados de seus anos a serviço do Ministério do Planejamento nos quais descreve entregas de malas de dinheiro, com valores, destinatários, endereços e, em alguns casos, fotos e gravações.

Essas quantias seriam parte de um esquema de distribuição de subornos de empresários a funcionários do governo para que fossem beneficiados em concursos públicos para construção de obras de infraestrutura, principalmente gasodutos e hidrelétricas.

No mesmo dia em que a reportagem foi divulgada, foram realizadas 34 operações de busca e apreensão, e detidas 12 pessoas. A intenção era usar a Lei do Arrependido pela primeira vez em um caso de corrupção, após o Congresso aprovar a alteração da legislação que permite o expediente.

A lei, apesar do nome que enfatiza a questão moral e não o interesse particular de escapar de uma punição, equivale à delação premiada brasileira.

Ao mesmo tempo em que as investigações trazem denúncias graves relacionadas ao suposto sistema de subornos, porém, os métodos usados na operação conjunta têm sido criticados pela oposição e por jornalistas.

O repórter que assina a reportagem, Diego Cabot, diz ter recebido as cópias dos cadernos de um intermediário que desconhecia seu teor.

Com os cadernos em mãos, o jornalista consultou seus superiores, que decidiram entregar o material à Justiça, e combinar com o juiz federal Claudio Bonadio que a reportagem sobre os cadernos sairia no mesmo dia em que este decidisse começar as operação de buscas e prisões.

“Nós queríamos ter o respaldo da Justiça para garantir que a investigação seguiria sem tentativas de constrangimento de políticos”, justificou um dos editores-chefe do jornal, Claudio Jacquelín.

Uma das coisas que a Justiça pôde fazer, diz, foi checar as datas das supostas entregas na Quinta de Olivos —uma das residências oficiais— com a lista de visitantes do local.

Os cadernos têm levado empresários e juízes a dizerem à Justiça que contribuíram voluntariamente ou foram pressionados por funcionários kirchneristas a pagar propina para participar de licitações.

Nesta sexta (17), o empresário Juan Chediack declarou ter participado de várias reuniões em que se discutiram porcentagens a serem distribuídas e nomes dos envolvidos.

Chediack, cujo depoimento ainda não era conhecido em detalhes, também afirma que a ex-presidente e hoje senadora Cristina Kirchner sabia de todas as movimentações.

Ainda nesta sexta, o empresário Gabriel Romero, da empreiteira Emepa, afirmou ter pago US$ 600 mil (R$ 2,3 milhões) a Cristina em troca da concessão para explorar uma hidrovia que liga o Atlântico à capital paraguaia, Assunção.

Nesta semana, houve a primeira delação de um “arrependido” do governo, o então responsável pela construção de rodovias Claudio Uberti. Ele afirmou que há no país um sistema de cartelização de obras públicas e deu detalhes, ainda não divulgados, de como funcionaria o esquema.

Chamada a depor, Cristina negou as acusações, fez sua declaração por escrito e pediu que se intimasse o atual presidente, Mauricio Macri. Ela alega existir um sistema de suborno no governo do sucessor, uma vez que boa parte dos empresários tem boas relações com ele ou com as empresas de sua família, o Grupo Macri, cuja atividade principal é a construção.

Na semana anterior, o primo de Macri, Angelo Calcaterra, ex-proprietário da Iecsa, empreiteira que se associou à brasileira Odebrecht para realizar uma obra na capital, depôs em busca de um acordo de “arrependido”. Afirmou, na ocasião, ter pago caixa 2 para as eleições do kirchnerismo. A Iecsa era parte do Grupo Macri, dirigido pelo pai do presidente, Franco Macri, um ex-aliado do kirchnerismo.

Um ex-juiz federal citado nos cadernos também foi intimado a depor. Norberto Oyarbide é aliado ao kirchnerismo e engavetou em seu período várias acusações contra o casal —a mais famosa delas, de enriquecimento ilícito.

A jornalistas, Oyarbide disse que a razão pela qual os processos contra os Kirchner não avançaram quando estavam sob sua responsabilidade era porque “havia pressões de todos os lados”. À imprensa, porém, não disse quem a exercia.

Outro “arrependido” kirchnerista, o ex-chefe de gabinete Juan Abal Medina, admitiu ter recebido propina de empresários para a campanha legislativa de 2013, mas negou um esquema sistemático.

O atual governo lavou as mãos com relação ao escândalo, conhecido na Argentina como “cadernos da corrupção”. Em entrevista a jornalistas, o chefe de gabinete, Marcos Peña, negou que o episódio se pareça com a Lava-Jato brasileira.

“No caso do Brasil, investigava-se um governo que estava no poder, por isso causou tanta instabilidade no país. Agora temos leis de responsabilidade empresarial que impediria que algo assim continuasse ocorrendo”, disse.

Fontes da Casa Rosada afirmam que o medo da atual gestão é que o escândalo respingue em Macri e possa atrapalhar a vinda de investimentos estrangeiros, uma de suas bandeiras. Peña acrescentou que não crê que as investigações abalem a economia.

O analista político Carlos Pagni discorda. Segundo ele, os políticos mudaram, mas as empresas que cuidam das obras públicas na Argentina são as mesmas. Se forem processadas, haverá impacto na economia, que já enfrenta o que Macri chama de “tormenta”: a desvalorização do peso e a disparada da inflação.

A legitimidade das anotações de Centeno ainda precisa ser comprovada. Ele diz ter queimado os originais por se sentir em perigo. Quem o teria convencido a entregar as cópias foi sua mulher.

O motorista também pede um acordo de “arrependido” para relatar a origem e as circunstâncias das anotações.

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