Descrição de chapéu The Washington Post Venezuela

Crises na América Latina fazem surgir novos piratas no Caribe

Situação na costa venezuelana é de 'caos criminal', diz especialista

Cedros (Trinidad e Tobago) | Washington Post

Sob o sol que batia sobre o azul cobalto do mar caribenho, a embarcação aparecia como um corte no horizonte. Ela foi se aproximando. Mas os tripulantes do “Asheena” não prestaram atenção.

Guarda Costeira faz patrulha em busca de piratas e contrabandistas próximo à ilha venezuelana de Curaçao
Guarda Costeira faz patrulha em busca de piratas e contrabandistas próximo à ilha caribenha de Curaçao, ao norte da Venezuela - Meridith Kohut/The New York Times

“Estávamos procurando carapitanga, como sempre, e achamos que eles também estavam pescando”, disse Jimmy Lalla, 36, um dos tripulantes que pescavam em águas de Trinidad e Tobago em abril passado, a poucos quilômetros da costa da Venezuela.

A outra embarcação estava chegando mais e mais perto. Quando ela se colocou ao lado do barco deles, uma piroga de sete metros, Lalla pensou: “Será que estão precisando de ajuda?”. Um homem forte e baixo saltou a bordo da piroga, gritando em espanhol e agitando um revólver.

“Então entendemos tudo”, falou Lalla. “Eram piratas.”

Séculos depois de os canhões de Barba Negra silenciarem e da bandeira pirata ter desaparecido de portos em todo o Caribe, a região está vivendo uma era marcada por piratas novos e menos romantizados.

Crises políticas e econômicas explodem da Venezuela à Nicarágua e ao Haiti, gerando anarquia e criminalidade. Com o desabamento do Estado de direito, algumas partes do Caribe estão virando áreas mais perigosas do que foram em muitos anos, dizem especialistas.

Segundo observadores, os atos de vilania muitas vezes parecem ocorrer com a cumplicidade ou mesmo o envolvimento direto de autoridades corruptas. Isso vem acontecendo especialmente nas águas ao largo da Venezuela.

“A situação ao longo da costa venezuelana é de caos criminal, de um pega para capar generalizado”, disse Jeremy McDermott, co-diretor da organização sem fins lucrativos Insight Crime, que estuda a criminalidade organizada na América Latina e Caribe.

Faltam informações abrangentes sobre a pirataria na América Latina e no Caribe. Mas um estudo conduzido ao longo de dois anos pela entidade sem fins lucrativos Oceans Beyond Piracy (Oceanos sem Pirataria) registrou 71 incidentes graves na região em 2017, incluindo assaltos a embarcações mercantes e ataques a iates.

O número representa um aumento de 163% em relação ao ano anterior. A grande maioria dos ataques ocorreu em águas caribenhas.

Os incidentes vão desde assaltos agravados no alto mar até ataques brutais, dignos dos piratas do século 17.

Em abril, por exemplo, homens mascarados subiram em quatro barcos de pesca guianenses a 48 km da costa do país sul-americano. Segundo relatos dos sobreviventes, os agressores jogaram óleo quente sobre os tripulantes, os atacaram com facões e os atiraram ao mar, para em seguida roubar seus barcos. Das 20 vítimas, cinco sobreviveram. As outras morreram ou foram dadas como desaparecidas.

O presidente da Guiana, David Granger, caracterizou o ataque como “massacre”. Autoridades guianenses sugerem que o incidente teria estado ligado à violência de gangues no vizinho Suriname.

“Disseram que levariam o barco e que todos teriam que se jogar no mar”, contou à Reuters o sobrevivente Deonarine Goberdhan, 47. Espancado e jogado no mar, ele contou, “tentei ficar com a cabeça acima da água, para poder respirar. Engoli muita água salgada. Olhei para as estrelas e o mar. Rezei muito".

Relatos de casos de pirataria chegaram nos últimos 18 meses de locais próximos a Honduras, Nicarágua, Haiti e Santa Lúcia. Mas, dizem analistas, em nenhum lugar o aumento dos casos tem sido tão nítido quanto ao largo da Venezuela.

A crise econômica no país sul-americano elevou a inflação para 1 milhão por cento e gerou falta de alimentos e remédios. A desnutrição é crescente, as doenças grassam soltas, e as redes de água e eletricidade vêm falhando por falta de funcionários treinados e peças de reposição.

Policiais e militares abandonam seus postos de trabalho, enquanto seus salários perdem quase todo o valor. Sob o governo socialista do presidente Nicolás Maduro, a repressão e a corrupção são crescentes.

Essas condições estão forçando alguns venezuelanos a agir movidos pelo desespero.

Um funcionário portuário venezuelano, exigindo anonimato para falar da corrupção oficial, disse que oficiais da guarda costeira venezuelana vêm subindo em embarcações ancoradas e exigindo dinheiro e comida. Devido a isso, navios comerciais estão ancorando cada vez mais longe da costa, desligando suas luzes e seus motores para evitar ser vistos à noite.

Mas essa medida nem sempre funciona.

Em julho uma embarcação da empresa local Conferry, que transporta cargas para ilhas venezuelanas próximas, foi invadida perto do porto de Guanta por três homens armados com facões e revólveres. Quatro tripulantes foram deixados amarrados durante horas enquanto os assaltantes roubavam alimentos e artigos eletrônicos.

Em janeiro, em Puerto La Cruz, também na costa nordeste, sete ladrões armados invadiram um navio-petroleiro ancorado. Amarraram o guarda do navio e roubaram seus estoques. Incidentes semelhantes foram denunciados desde então, segundo a divisão de Crimes Comerciais da Câmara Internacional de Comércio, sediada em Londres.

Trinidad e Tobago, um país insular de 1,4 milhão de habitantes, visível a partir da costa da Venezuela, se preocupa há muito tempo com a criminalidade que emana do país vizinho. Desde a década de 1990, narcotraficantes enviam maconha e cocaína colombiana de portos venezuelanos para Trinidad e de lá para outros países caribenhos e mais distantes.

Moradores locais dizem que o tráfico e a pirataria vêm aumentando recentemente e ficando mais violentos. Cinco pescadores trinitários do porto de Cedros, no sul do país, que exigiram anonimato para falar, temendo por sua segurança, disseram que nos últimos meses testemunharam a chegada de muitos barcos da Venezuela com armas militares contrabandeadas, além de drogas, mulheres e animais exóticos.

“Às vezes esses venezuelanos se dispõem a trocar as armas e os animais por comida”, disse um pescador de 41 anos.

Outro pescador contou que em janeiro foi mantido em cativeiro durante horas por piratas que falavam espanhol, enquanto eles contatavam seu irmão para exigir resgate de US$ 500 (R$ 1.900).

Neste ano, após vários incidentes de contrabando e pirataria, um barco da guarda costeira de Trinidad foi despachado para patrulhar as águas. Mas os moradores locais dizem que os bandidos simplesmente esperam a patrulha passar para então entrarem em ação.

As autoridades de Trinidad não reagiram a reiterados pedidos de declarações.

Mas políticos oposicionistas denunciam o aumento na pirataria. Eles dizem também que o fluxo crescente de armas automáticas vindas da Venezuela, algumas das quais aparentemente saídas de arsenais militares, está contribuindo para elevar o índice de homicídios em Trinidad.

“Isto me lembra de como começaram os problemas na costa da África oriental”, disse o deputado Roodal Moonilal, do oposicionista Partido do Congresso Nacional Unido, aludindo à multiplicação de casos de sequestros de navios ao largo da Somália alguns anos atrás.

“O que estamos vendo acontecer –pirataria, contrabando— é fruto do colapso político e econômico da Venezuela.”

Para aqueles que ganham a vida pescando nas águas mornas do Caribe, a pirataria é uma fonte de medo. Hoje os pescadores locais vêm pescando mais perto da costa e às vezes à noite, para reduzir o risco de ataques.

Lalla contou que naquela tarde de abril em que o “Asheena” foi invadido, ele ficou apavorado.

“O homem que falava espanhol apontou a arma para mim, depois apontou para a água. Eu entendi: ele estava me mandando pular na água”, ele disse.

Lalla pulou. Momentos depois, o imediato –Narendra Sankar, 22— o seguiu. Os dois estavam nadando em direção a uma plataforma petrolífera marítima quando Sankar sofreu câimbra.

“Eu já tinha chegado à plataforma, então tive que pular na água de novo para socorrê-lo”, contou Lalla. “Ele ia se afogar.”

Eles viram os piratas tomar sua embarcação, equipada com dois motores externos caros. O capitão do barco, Andell Plummer, ainda estava a bordo. Lalla e Sankar foram resgatados por um barco pesqueiro que passou ao lado. Lalla contou que, quando eles denunciaram a ocorrência às autoridades, um funcionário lhes disse: “Não temos barco para ir atrás dos piratas. Não podemos fazer nada.”

Eles dizem que não houve notícias de Plummer desde aquele dia. O Ministério de Segurança Nacional de Trinidad não respondeu a um pedido de informações sobre seu caso.

“Levaram meu filho”, disse o pai do capitão, Deoraj Balsingh, 58, ao lado de um cais enlameado em Trinidad, cercado por outros barcos.

“Não sabemos de nada”, falou Balsingh. “Não sabemos se ele está vivo ou morto."

Tradução de Clara Allain

Erramos: o texto foi alterado

Legenda da primeira foto em versão anterior deste texto afirmava que Curaçao pertence à Venezuela. A ilha caribenha é território holandês. A informação foi corrigida. 

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