Descrição de chapéu The Washington Post

'Eu confiava nele', diz homem abusado por padre americano na adolescência

Jim VanSickle, 55, foi uma das mais de mil vítimas identificadas em relatório de júri nos EUA

Jim VanSickle quando estava no ensino médio (esq.) e atualmente com com sua neta
Jim VanSickle quando estava no ensino médio (esq.) e atualmente com com sua neta - Jim VanSickle/Arquivo pessoal
Isaac Stanley-Becker
The Washington Post

Jim VanSickle começou a 11ª série na escola secundária cristã Bradford Central, no outono de 1979, e descobriu que o professor de inglês era novo: um padre católico jovem e recém-ordenado, chamado David Poulson.

Era uma fase turbulenta na vida de Jim, que tinha 16 anos. Sua avó tinha morrido; seu pai adoecera e não podia trabalhar. “Eu era um garoto perdido”, ele comentou numa entrevista.

Ele encontrou um mentor no professor de inglês, apenas dez anos mais velho que ele. Poulson o nomeou capitão da equipe de xadrez, que viajava da cidade deles, no norte da Pensilvânia, para Nova York para participar de torneios. Eles dividiam jantares animados depois dos xeques-mates.

Jim diz que foi graças a Poulson que ele concluiu o ensino médio e fez faculdade. “Ele deu uma virada na minha vida”, disse ele. “Foi meu líder espiritual. Era meu amigo.”

Mas Jim, que hoje tem 55 anos, também responsabiliza Poulson por ter aberto um rombo em sua vida, “deixando um buraco que nunca será preenchido”. Ele diz que o padre o abusou física e emocionalmente, manipulando-o psicologicamente e explorando a intensidade do vínculo entre eles. “Revelei coisas a ele a meu respeito que ninguém mais sabia”, ele admitiu.

Poulson é um dos mais de 300 padres católicos da Pensilvânia citados em um relatório de um júri  divulgado na terça-feira (14) que acusa líderes da Igreja de acobertar uma série de abusos sexuais de crianças ao longo de 70 anos.

Na investigação mais ampla já feita por um órgão governamental sobre abusos cometidos por clérigos nos Estados Unidos, o júri da Pensilvânia identificou mais de mil vítimas, mas ressaltou que é provável que existam outros milhares de casos.

O documento é um catálogo de violência física e psicológica hedionda. O texto relata como um padre teria abusado sexualmente de cinco irmãs de uma mesma família; que outro confessou ter violentado pelo menos 15 meninos, alguns de apenas 7 anos de idade; que uma vítima foi amarrada e chicoteada com tiras de couro; que uma vítima morreu de uma overdose de analgésicos tomados para tratar um problema na coluna sofrido durante um ataque particularmente violento.

De acordo com o tribunal, a maioria das vítimas nunca poderá levar seus alegados agressores à Justiça, já que as leis estaduais estabelecem que as vítimas de abuso sexual infantil têm até os 30 anos de idade para mover ações cíveis e até os 50 para processos criminais.

Cerimônia realizada nesta quarta em igreja em Pittsburgh, na Pensilvânia, uma das dioceses atingidas pelo escândalo
Cerimônia realizada nesta quarta (15) em igreja em Pittsburgh, na Pensilvânia, uma das dioceses atingidas pelo escândalo - Jeff Swensen/Getty Images/AFP

A história de Jim VanSickle, que ele relatou ao jornal The Washington Post, expõe não apenas a natureza do abuso que, segundo o júri, foi acobertado por líderes da Igreja durante anos. Seu relato também revela os esforços empreendidos por vítimas ao longo de anos para reestruturar suas vidas.

A maioria dos padres acusados provavelmente não chegará a enfrentar novas acusações criminais, mas o suposto abusador de VanSickle é um dos dois padres que estão sendo levados a julgamento. No início deste ano David Poulson foi acusado de abusar de dois meninos entre 2002 e 2010. Ele ainda não se declarou nem culpado nem inocente.

Jim VanSickle, que trabalha como professor particular e coach de vida em Pittsburgh, não pode participar da ação contra Poulson, devido à sua idade. Mas ele depôs diante do júri sobre os maus-tratos aos quais foi submetido pelo padre e está fazendo campanha para incentivar outras pessoas a virem a público e para que as leis do estado sobre o prazo de prescrição de crimes sejam modificadas para permitir que as vítimas procurem justiça.

VanSickle descreveu a divulgação do relatório como uma vitória em uma “guerra que está apenas começando” contra a hierarquia católica. Ele pretende usar a lista de padres citados no relatório para rastrear as vítimas, em um esforço para obrigar os cardeais da Igreja a assumir a responsabilidade na questão.

Seu objetivo é assegurar que o escândalo que explodiu em 2002 com revelações em Boston –e que desde então se estendeu da Austrália a Guam, da Irlanda a Honduras e de volta aos Estados Unidos, levando recentemente à renúncia do cardeal Theodore McCarrick, de Washington— não seja esquecido.

Mas VanSickle diz que ainda se sente confuso em relação a seu alegado abusador. O fato de ainda sentir afeto por Poulson, disse ele, é a principal razão pela qual considera que os maus-tratos aos quais foi submetido foram tão eficazes.

“Ele me ofereceu alguém em quem eu podia confiar, e é isso que torna tudo isso tão confuso para mim”, disse VanSickle. “Vendo-o acorrentado e usando o uniforme laranja de um detento, as pessoas me perguntam: ‘Por que você não o odeia? Por que não quer machucá-lo?’. Eu quero. Mas, ao mesmo tempo, tenho sentimentos conflitantes muito fortes. É difícil deixar de amar o homem que ele foi antes de fazer o que ele fez.”

Pouco a pouco os jantares com a equipe de xadrez do ensino médio viraram jantares a dois. VanSickle recordou que Poulson o levava ao cinema e, no carro, punha sua mão sobre a perna dele. Quando estavam no presbitério, o padre sempre fazia cócegas em VanSickle, que sempre tentava se esquivar. Mesmo assim, ele continuou a admirar seu professor e gostar dele. “Eu olhava para o cara –ele era um padre. Eu confiava nele.”

Pouco depois o padre introduziu o álcool no relacionamento deles e começou a levar Jim em longos passeios de carro, levando uma caixa de seis cervejas. As cócegas viraram brincadeira de luta no presbitério, diante do altar ou entre os bancos da igreja, onde o professor tentava pegar VanSickle desprevenido e apalpá-lo.

“Ele queria contato físico o tempo todo”, recordou VanSickle.

O padre mandou Jim terminar com a namorada dele, dizendo à adolescente que ela era “má influência”. Jim disse que, se ele não fizesse o que Poulson lhe pedia, o professor ficava retraído, adotando uma postura ciumenta, fazendo beicinho, “e eu então me esforçava para manter o relacionamento indo bem, o que tornava ainda mais poderoso o processo pelo qual eu estava sendo manipulado.”

Quando VanSickle estava prestes a concluir o ensino médio, ele e Poulson viajaram juntos para o santuário de Nossa Senhora de Fátima em Ohio. VanSickle contou que, em um hotel decrépito, “ele me agarrou, e eu percebi que ele estava com uma ereção debaixo da roupa”. Quando ele empurrou o professor para longe, Poulson foi ao banheiro para vestir um pijama. Quando ele saiu do banheiro, disse VanSickle, “vi o pênis ereto dele saindo da calça.”

“Naquele momento ele me atacou, e pela primeira vez eu senti terror e medo. Parecia que ele tinha oito ou nove braços, contra os dois que eu estava usando para tirá-lo de cima de mim.”

VanSickle conseguiu afastar o padre, e disse que a partir daquele momento lhe deu um branco, tanto que ele não se lembra do que aconteceu até eles estarem no carro a caminho de casa. “Andamos sete horas no carro sem trocar palavras, a não ser quando ele parou para comprar uma caixa de seis cervejas e entregou para mim”, ele recordou. “Ele nunca pediu desculpas, e a gente nunca falou do assunto.”

VanSickle foi estudar numa faculdade beneditina perto de Pittsburgh, enquanto Poulson foi para uma universidade católica em Erie, na Pensilvânia. “Achei que ele talvez tivesse entendido a mensagem”, disse VanSickle. Mas o padre começou a fazer visitas não anunciadas a seu antigo aluno, oferecendo dinheiro a ele e, em dado momento, comprando-lhe um carro. Na última vez em que Poulson apareceu, levou outro estudante com ele –“seu novo brinquedinho”, alegou VanSickle.

“Cheguei a sentir ciúmes e raiva pelo relacionamento que eu tinha tido com ele e que se perdeu”, ele disse. “Mas o mandei embora, o obriguei a ir embora. Foi a última vez que o vi até a audiência preliminar dele, este ano.”

Jim levou um ano para contar a seu pai sobre o que tinha acontecido e dez anos para contar à sua mãe. Tirando os dois, ele manteve silêncio sobre o assunto, enquanto David Poulson passava de paróquia em paróquia na Pensilvânia e acabou voltando para Erie.

Em fevereiro a mãe de Jim VanSickle leu em um boletim da Igreja que Poulson tinha sido acusado de abuso sexual infantil. Isso desencadeou uma semana de turbulência emocional para VanSickle, que ficou debatendo consigo mesmo. “O que fazer? Decidi que eu não podia deixar de vir a público e fazer a denúncia contra ele.”

VanSickle acabou documentando seu trauma no Facebook, que, desde então, ele vem usando como plataforma para entrar em contato com sobreviventes de abusos cometidos por clérigos em todos os 50 estados americanos e em 11 países. Ele diz que falar com outras vítimas o ajudou a entender por que ele vinha vivendo sob uma nuvem de ansiedade e raiva.

“É o trauma emocional e a perda daquele relacionamento que ainda me atormentam e me controlam em algumas situações”, refletiu.

Durante anos ele sofreu com o medo constante de que sua esposa, com quem está casado há 33 anos, o deixaria. Quando começou a fazer terapia, quatro anos atrás, descobriu que tinha transtorno de personalidade borderline. “Os únicos dois sentimentos reais que eu tinha eram raiva e medo, e os dois me levavam a ser violento.”

Hoje ele e sua mulher estão fazendo terapia, e já não tem as explosões de raiva que colocavam em risco o relacionamento com sua família.

A religião também o tem ajudado, apesar das lembranças dolorosas. VanSickle não é católico praticante desde que sofreu o abuso, mas se considera um cristão “renascido em Cristo”.

“Hoje tenho um relacionamento pessoal com o Senhor”, ele disse. “Minha fé se fortaleceu ao longo do tempo. A Igreja deixou de ser uma opção para mim, então eu passei a ser um cristão muito convicto por conta própria. Eu precisava ser; se não fosse, teria perdido minha família.”

Embora seu próprio caminho tenha se endireitado, VanSickle descobriu que incentivar outras pessoas a fazer seus relatos e denúncias será um processo complicado. Um homem com quem ele falou no fim de semana tinha tanto medo de ser reconhecido que só concordou em encontrar VanSickle num shopping, depois do horário de fechamento das lojas.

“Ele estava morrendo de medo, como eu no passado”, disse ele.

Tradução de Clara Allain

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