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'Fizemos tudo o que devíamos. Mas perdemos tudo assim mesmo', diz vítima de incêndio em Portugal

Povoado de Monchique, na região do Algarve, foi um mais atingidos pelas chamas

Ricardo J. Rodrigues
Monchique (Portugal) | Diário de Notícias

A romaria de São Romão é a grande festa da aldeia de Alferce, um povoado de 300 almas a sete quilômetros de Monchique. Ontem era o dia gordo: havia missa às três e procissão às quatro da tarde, a partir das cinco começava o bailarico. Estava planeada festa rija, primeiro com a atuação de João do Carmo, ao cair da noite com o Rancho de Santo Estevão e madrugada dentro o palco era de Nikita.

Mas, ainda o sino da aldeia não tinha dado as cinco badaladas, quando a GNR entrou na povoação com o aviso de que este não seria um dia de querido mês de agosto. Vinha lá fogo, anunciaram. E veio sim, rápido e forte. Quando se fechou a quermesse e a barraca de venda da cerveja, já as chamas roçavam o fundo do vale. Quinze minutos depois, chegavam às primeiras casas. Nunca ninguém tinha visto nada assim.

"Fizemos tudo, tudo, tudo o que devíamos fazer", diz Hélio Guerreiro, que na noite de domingo (5) viu as chamas engolirem uma parte da sua casa e todos os sobreiros e medronheiros que garantiam o sustento da família. "Limpamos os terrenos todos em maio e gastamos uns bons milhares de euros com a brincadeira. As estradas aqui tinham sido limpas, água não nos falta, fizemos sempre o que nos disseram. E perdemos tudo assim mesmo."

Emociona-se, logo ele que não está habituado a mostrar fraqueza. Foi futebolista profissional a vida toda, oito anos no Portimonense, outros tantos em Inglaterra. A terra que os pais plantaram durante décadas serviu-lhe para enterrar a bola de vez. "Era o meu refúgio isto. Mas o pior não sou eu. Como é que vou pedir aos meus pais, que têm quase 80, para recomeçarem a vida do zero?"

A Guarda aconselhou a evacuação, que o povo fosse para São Marcos da Serra —a estrada para Monchique já não estava transitável. Saíram sobretudo idosos e pessoas com mobilidade reduzida. Mas Alferce é uma das maiores aldeias da região e a Proteção Civil já lá tinha andado a explicar o que fazer quando o fogo chegasse, o centro da povoação era lugar seguro. "Estávamos de alguma forma preparados. Mesmo que nunca se esteja preparado para uma coisa destas."

Hélio acredita que a tragédia não foi pior por um único motivo: São Romão. "Os bombeiros só apareceram depois de o fogo passar, mas como era dia de festa estava cá muita rapaziada nova e conseguimos fazer alguma coisa." A aldeia tem quatro veículos cisterna, foram fornecidos meses antes pela proteção civil. Quando o fogo começou a beijar as primeiras habitações, os mais novos fizeram-lhe frente. Não salvaram tudo, mas evitaram que ele entrasse aldeia adentro. Perderam tudo, menos as vidas. "Bem vistas as coisas, podia ter sido pior."

O primeiro grande teste

No final do quarto dia de incêndio, a serra de Monchique parece um território em guerra.

Há checkpoints policiais a cada cruzamento, há veículos com todo o tipo de homens e mulheres fardados a circularem pelas estradas, há sirenes constantes, há uma cortina de fumo, há voos rasantes de helicópteros e aviões.

Nesta segunda-feira (6) havia 964 operacionais no terreno e, nos dias anteriores, chegaram a estar mais de 1.000. Mais 291 veículos, mais uma dezena de meios aéreos. Há bombeiros e GNR, corpos de sapadores e da Cruz Vermelha, militares do exército e fuzileiros. E políticos.

O secretário de estado da Proteção Civil está constantemente no terreno. O ministro da Administração Interna também já visitou o centro de operações, e o premiê português, António Costa, já falou publicamente sobre o avanço dos trabalhos na serra algarvia.

O governo sabe que este é o momento do tudo ou nada. Monchique não só é grande fogo do ano como é o primeiro grande fogo depois dos incêndios de 2017. E, se os relatórios das Comissões Técnicas Independentes apontaram no ano passado falhas atrás de falhas, este ano sente-se bem a pressão para que não haja o mínimo erro.

As evacuações das aldeias estão a ser feitas sem contemplações, às vezes de forma agressiva. José Rosa é um dos poucos habitantes da Cerca da Rita, onde só mora uma dezena de almas. Os últimos meses passou-os ele limpar os terrenos à volta de casa, por isso nunca acreditou que o fogo ali chegasse sem que o homem lhe pudesse dar luta. "Olhe, parece que foi instituída a lei marcial. Disseram-me que saía nem que fosse à força. Caramba, eu não fiz nada de mal, só queria defender a minha terra."

Ainda ninguém lhe tirou da cabeça que, se tivesse ficado, conseguiria salvar os animais e os armazéns onde guarda as alfaias agrícolas. Mas a polícia não teve contemplações. Na aldeia de Umbria, uns quilômetros adiante na mesma estrada desolada, a nacional 267, fala-se do vizinho que foi algemado por se recusar a sair. Velhotes, como todos aqui. Mas as ordens estão definidas: bem pode arder o mato, bem podem arder casas, mas as autoridades vão fazer tudo o que puderem para que não se perca uma vida neste incêndio.

Mesmo para os jornalistas, a informação vem de uma só voz e a horas marcadas. O comando organiza várias conferências de imprensa diárias para dar conta dos desenvolvimentos do fogo. Bombeiros, guardas e militares têm ordens para não falar. Nada pode falhar, nem sequer a comunicação. É que, ainda por cima, Monchique foi o concelho que António Costa visitou em junho para dar visibilidade ao bom exemplo que ali estava a ser feito na limpeza de matos. As autoridades tentam controlar tudo, sim. Só não estão a conseguir controlar o fogo.

Aquilo que não devia arder

A serra algarvia estava identificada como uma das zonas de maior risco pelo ministério da Administração Interna. E há um ano que se ouvia esta conversa informal entre bombeiros do país inteiro: este era o cenário mais do que provável para o próximo grande incêndio.

"Sabíamos isso e preparamos tudo o que podíamos preparar", diz Rui Andrépresidente da Câmara de Monchique. "Contratamos 15 empresas do município para limpar as matas, além do corpo de sapadores que tínhamos em funções na câmara. Fizemos um contrato especial para limpar totalmente as redes viárias, dez metros para cada lado. Foi um esforço enorme."

Por isso é que André diz que nunca esperou que o fogo durasse todo este tempo, que se alimentasse da floresta tantos dias. "Temos o problema que muita gente tem: metade do nosso coberto é eucalipto. Mas a floresta é um dos três pilares da economia do conselho. Os outros são a água e a pedra. Repare, temos uma floresta que limpamos, temos pedra e temos água de sobra. Não se percebe como isto arde desta maneira."

Ao seu lado levantam agora os helicópteros que estiveram parados todas a manhã, o vento amainou e é possível agora usar os meios aéreos. Apesar do cansaço, Rui André está positivo. O dia de combates corre bem, 95% do fogo está dominado, o resto é complicado, mas não faltam homens no terreno.

Ao cair da tarde, levanta-se uma ventania danada e muitas das zonas que estavam já em rescaldo têm reacendimentos. O fogo cresce, volta a rodear a vila. Aparecem novos focos, rápidos, volumosos. De repente, as chamas passam as margens de um ribeiro e voltam a por em perigo as casas. Fóia é evacuada, o pesadelo volta, parece nunca mais terminar.

"Não se resolve num ano décadas de abandono da floresta", contava o agente de uma equipa de reconhecimento e avaliação, preocupado com a velocidade de avanço das labaredas. "As matas têm camadas e camadas de matéria combustível, estão cheias de eucaliptos, as temperaturas estão cada vez mais extremas e os níveis de umidade estão assustadoramente baixos."

Esta noite há centenas de homens exaustos a travarem um combate que tarda em ver vitória. E isso pode muito bem ser uma lição. A humanidade bem pode prevenir-se contra os estragos, mas nunca conseguirá dominar totalmente a Natureza.

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