Descrição de chapéu The Washington Post

Papa Francisco negou promoção a arcebispo por trás de denúncias explosivas

Observadores veem em episódio embate entre conservadores e liberais na igreja

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Washington | Washington Post

Apenas meses antes de ser chamado de volta pelo papa Francisco em 2016, o arcebispo Carlo Maria Viganò, ex-embaixador do Vaticano nos EUA, declarou em um discurso em Baltimore que o silêncio era "imprudente".

Em uma carta de 11 páginas divulgada no domingo (26), Viganò, um homem pequeno de 77 anos que não é estranho a intrigas internas da igreja, seguiu seu próprio conselho e delineou de forma explosiva um acobertamento supostamente extraordinário de denúncias de abuso sexual contra um ex-arcebispo de Washington, Theodore McCarrick. Segundo Viganò, a coisa chegava até o papa atual.

Os arcebispos Carlo Maria Viganò (esq.) e Vincenzo Paglia (dir.) ouvem o papa Francisco na Filadélfia (EUA) - Vicenzo Pinto - 26.set.15/AFP

O papa Francisco "sabia pelo menos desde 23 de junho de 2013 que McCarrick era um predador serial", declarou Viganò. "Ele sabia que ele era um homem corrupto e o encobriu até o amargo fim."

Viganò também alegou que o papa emérito Bento 16, um famoso conservador, conhecia as acusações. Nem o atual pontífice nem seu antecessor confirmaram ou negaram as afirmações.

Em uma instituição que espera total lealdade ao trono de são Pedro, observadores que tentam entender a censura sem precedentes de Viganò veem evidências das guerras internas entre conservadores e liberais que definem o mandato de Francisco.

"Como pessoa, você poderia dizer que Viganò é um pouco áspero", disse o reverendo Tom Reese, autor de "Inside the Vatican: The Politics and Organization of the Catholic Church" [Por dento do Vaticano: a política e organização da Igreja Católica]. Ele acrescentou: mas "isto é como um membro da CIA escrever um livro revelador. Simplesmente não acontece".

Especialmente nos últimos meses, Viganò —a quem o papa Francisco negou a tradicional promoção a cardeal depois de seu período como embaixador nos EUA —  alinhou-se abertamente aos críticos mais ferozes do papa. Esses prelados conservadores criticaram a aproximação do primeiro papa latino-americano aos católicos gays e divorciados, questionando abertamente suas posições.

Durante seu período em Washington, Viganò apareceu como um conservador que arranjou um encontro de surpresa entre Francisco e Kim Davis —a funcionária pública do Kentucky que passou seis dias presa por se recusar a emitir licenças de casamento para casais homossexuais.

Mas durante seu tempo nos EUA Viganò não esteve acima de censuras sobre a questão do abuso sexual.

Segundo documentos de uma investigação patrocinada pela igreja, Viganò tentou encobrir um caso contra o ex-arcebispo de St. Paul, em Minnesota, John Nienstedt, que enfrentou denúncias de má conduta com homens adultos.

"O arcebispo Viganò certamente é um reformista improvável", disse Melanie Sakoda, membro do conselho do grupo SNAP, que defende as vítimas de abuso do clero.

Ela acrescentou: "Conservadores dentro da igreja vêm tentando usar a crise atual para condenar o papa Francisco e outros elementos liberais da igreja. Os conservadores saltaram sobre as denúncias contra o cardeal Theodore McCarrick, um liberal, enquanto ignoraram alegações semelhantes contra o arcebispo Nienstedt, um conservador".

Nascido em 16 de janeiro de 1941 em Varese, na Itália, Viganò foi ordenado padre em março de 1968 e rapidamente encontrou seu nicho na diplomacia. O religioso de fala macia, mas sério, trabalhou em missões do Vaticano no Iraque e na Inglaterra e serviu como núncio apostólico, ou embaixador, na Nigéria sob o papa João Paulo 2º em 1992.

Depois ele ascendeu a cargos mais importantes na Cúria Romana —a burocracia reduzida que dirige a Cidade do Vaticano. Suas cartas ao papa Bento 16 estavam entre os documentos mais explosivos roubados pelo mordomo do papa e publicados no escândalo "Vatican Leaks" em 2012, que ofereceu uma visão interna da novela italiana das disputas e fracassos morais nos altos escalões da igreja.

Em suas cartas, Viganò sugeria que abalou tanto a Santa Sé em suas cruzadas para limpar a corrupção —incluindo alegações de milhões de dólares gastos excessivamente em contratos — , que ele foi forçado a mudar de cargo. Embora seja geralmente uma posição cobiçada, Viganò viu sua transferência para a embaixada em Washington como um rebaixamento, que prejudicaria as reformas.

"Minha transferência neste momento", escreveu ele em uma carta de súplica a Bento 16, "provocaria muita desorientação e desânimo naqueles que acreditaram que era possível limpar tantas situações de corrupção e abuso de poder enraizadas na administração de tantos departamentos".

A intriga o seguiu aos EUA, onde Viganò logo se tornou conhecido como o leão conservador inabalável que, aparentemente sem o conhecimento de Francisco, arranjou a reunião com Davis em 2015. O Vaticano mais tarde se distanciou, dizendo que o encontro com Davis não deveria ser "visto como um endosso".

Embora os membros mais graduados da igreja se aposentem aos 75 anos, muitos continuam nos cargos. Viganò não foi um deles. Em 2016, meses depois do encontro com Davis, foi substituído.

Desde que voltou à Itália, Viganò se tornou uma figura fixa nos fóruns conservadores frequentados e muitas vezes organizados pelos principais críticos de Francisco --incluindo o cardeal Raymond Burke, que contestou abertamente o papa, especialmente sobre a aproximação de Francisco dos católicos gays e divorciados.

Burke e Viganò estão entre os membros da hierarquia que denunciaram a influência de homossexuais na igreja, e Viganò em seu texto denunciou uma autoridade do Vaticano por "promover homossexuais a cargos de responsabilidade".

Durante uma conferência contra o aborto em Roma neste verão, Viganò se sentou ao lado de Burke e fez uma crítica pouco velada à liderança do papa.

"A coisa que eu percebo estando com vocês", disse Viganò aos delegados conservadores, "é o grande desejo de ter uma liderança forte na igreja que possa unir a todos nós."

Em seu depoimento de 11 páginas, Viganò pediu a renúncia de Francisco, sugerindo que o papa também recusou seu conselho sobre a elevação de bispos nos EUA.

"É difícil não concluir que a verdadeira fonte de sua amargura é que ele está contrariado com o papa", disse Michael Sean Winters, um colunista do National Catholic Reporter, importante canal católico nos EUA. "Ele não será um cardeal. Se você é núncio em países como os EUA ou a França, no final de seu mandato você volta a Roma e geralmente é promovido a cardeal."

Francisco emitiu uma resposta com palavras vagas no domingo. "Li a declaração hoje de manhã e sinceramente devo dizer isto a você e a qualquer um interessado: leia aquela declaração atentamente e tire sua própria conclusão", disse.

Na segunda-feira, pelo menos uma autoridade importante apoiou Viganò. O reverendo Jean François Lantheaume, ex-primeiro conselheiro da nunciatura apostólica em Washington, disse que Viganò "diz toda a verdade. Eu sou testemunha".

"Os bispos não são imunes nem intocáveis", disse ele em uma comunicação publicada em sua página no Facebook. "São tão pecadores quanto os outros!!! Vamos dizer isso de uma vez por todas."

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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