Descrição de chapéu The Washington Post

Um ano após êxodo em massa, crise de rohingyas se deteriora

Militares defendem ação, e governo de Mianmar empreende esforço para minimizar impacto internacional

Cingapura | The Washington Post

Um ano atrás, os militares de Mianmar embarcaram em uma repressão maciça no estado tumultuoso de Rakhine, expulsando quase um milhão de pessoas da etnia rohingya para Bangladesh e criando um dos maiores campos de refugiados do mundo, enquanto supostamente estupravam mulheres, matavam crianças e decapitavam homens.

Os generais, entretanto, continuam desafiadores, mesmo enquanto as sanções aumentam, e o Departamento de Estado dos EUA e a ONU preparam relatórios que provavelmente contarão em detalhe os esforços premeditados dos militares para livrar o estado dos rohingyas muçulmanos. Eles acreditam que basicamente eliminaram uma ameaça que estava "se tornando cada vez maior", segundo um relato de conversas entre altos líderes militares e seus homólogos do Sudeste Asiático.

"Havia uma sensação de que o problema em Rakhine tinha sido resolvido, que essa era a solução", disse uma pessoa inteirada das conversas, que não quis ser identificada devido à delicadeza da questão. Os militantes rohingya, alegaram os militares, haviam civilizado o conflito ao se inserir nas aldeias e cidades, e tinham de ser contidos.

"Eles defendem sua atuação", acrescentou essa pessoa.

Entrevistas com meia dúzia de ex-generais de Mianmar e pessoas que conhecem suas ideias dizem que eles também ficaram irritados com a líder civil Aung San Suu Kyi e seus esforços para suprimir a indignação internacional --acreditando que ela os defende em público, enquanto trabalha para miná-los ao promover sanções em particular.

Suu Kyi --que fez um raro discurso no exterior em Cingapura na terça-feira (21), defendendo a condução da crise por seu governo-- viu esse relacionamento com os generais se deteriorar enquanto ela fica cada vez mais isolada internacionalmente, arrastando os pés e resmungando em reação à crise de agosto passado.

Sua tática preferida de terceirizar a questão dos rohingyas para um número cada vez maior de comissões com representantes internacionais --incluindo uma que foi chefiada pelo falecido secretário-geral da ONU Kofi Annan-- foi amplamente criticada, enquanto os rohingyas mal sobrevivem em Bangladesh e os que restaram em Mianmar têm cada vez menos acesso a ajuda humanitária, alimentos e recursos.

"Continuamos sem esperança", disse em uma entrevista por telefone Kyaw Hla Aung, um advogado rohingya que vive em um acampamento perto de Sittwe, a capital do estado de Rakhine. Ele e outros rohingyas dizem que as forças de segurança chegaram em levas antes do aniversário de um ano do conflito, enquanto médicos e profissionais de ajuda não são vistos há semanas.

Essa não foi a realidade que Suu Kyi imaginou em maio de 2016, seu segundo mês como líder de fato do governo civil de Mianmar, quando ela procurou Kofi Annan para liderar uma comissão que buscaria as origens do conflito em Rakhine. A comissão deveria fazer recomendações sobre como a paz seria alcançada no estado, onde a violência comunitária havia irrompido em 2012, levando 140 mil rohingyas muçulmanos a acampamentos repulsivos.

Membros do grupo minoritário dizem que são nativos de Mianmar, mas foram excluídos de uma lei de cidadania na era da junta militar, tiveram seus direitos e a liberdade de movimentos negados e se tornaram vulneráveis como alvos de extrema discriminação e violência.

Annan, segundo membros da comissão, embarcou em negociações que duraram meses com o governo de Mianmar para garantir que teria um mandato forte --a capacidade de levantar fundos de forma independente, viajar sem problemas por Rakhine e Mianmar e ter pessoal de apoio no país.

"Nós viajamos muito, de Maungdaw no norte a Ngapali no sul", disse Laetitia van den Assum, membro da comissão e ex-embaixadora holandesa na Tailândia. "Annan escreveu para o governo para garantir que a comissão não fosse apenas um escudo útil para eles. Queríamos ser levados a sério."

Em seu discurso na terça, Suu Kyi prestou tributo a Annan por sua dedicação ao problema.

Ele "cumpriu sua decisão de nos ajudar, mesmo depois de eventos em Rakhine que causaram graves críticas a Mianmar", disse ela, salientando que Annan achava tempo para falar com ela ao telefone periodicamente sobre os desafios que seu governo enfrentava.

Em 24 de agosto do ano passado, após mais de 150 consultas e reuniões, a comissão apresentou seu relatório final em uma entrevista coletiva em Yangon. Ele contém 88 recomendações sobre questões que incluem cidadania para os rohingyas, liberdade de movimento e educação e sugestões de como estas devem ser implementadas.

"Não há tempo a perder. A situação no estado de Rakhine está se tornando mais precária", disse Annan.

Apenas oito horas após seus comentários, militantes rohingya supostamente realizaram 30 ataques a postos de polícia de Mianmar no norte de Rakhine, segundo militares de Mianmar, levando-os a embarcar numa "operação de limpeza", às vezes com a ajuda de aldeões de Rakhine armados.

Centenas de aldeias muçulmanas foram incendiadas e milhares de pessoas mortas, e estima-se que outras 800 mil reuniram às pressas suas posses e marcharam através da fronteira para Bangladesh.

Os militares de Mianmar e o governo de Suu Kyi rapidamente negaram as denúncias de limpeza étnica. Na terça-feira, ela repetiu que "atividades terroristas" foram a causa inicial dos acontecimentos que levaram à crise no estado de Rakhine.

Diplomatas e trabalhadores de ajuda internacional em Mianmar, entretanto, disseram ter visto o que pareciam ser preparativos para uma operação em grande escala nas semanas que antecederam a campanha.

Forças de segurança limitavam a quantidade de suprimentos alimentares disponíveis às famílias rohingya, destruindo o excedente, segundo um relatório interno compartilhado com "The Washington Post". Tropas que entraram na área confiscaram facas de cozinha e cajados das famílias.

Suu Kyi, ciente da pressão internacional no rastro da violência, pediu que um novo conselho assessor implementasse as recomendações da comissão de Annan. Seria liderado por Surakiart Sathirathai, um político tailandês veterano.

Entre os convidados a participar estava Bill Richardson, um ex-embaixador dos EUA na ONU e governador do Novo México, que era um velho amigo de Suu Kyi.

"Ela me disse que seria um pequeno grupo de pessoas reconhecidas internacionalmente, que ajudariam a implementar o relatório da comissão de Annan", disse Richardson.

Ele concordou, salientando que precisava ter as mãos livres, mas estava preocupado com a mudança de tom que detectou na vencedora do prêmio Nobel [Suu Kyi].

"Eu lhe disse que [o relatório da comissão] não a colocava em boa luz, e ela começou atacá-lo. Ela disse: 'Todo mundo está contra mim, Bill, os grupos de direitos humanos, o seu país'", narrou ele.

Analistas dizem que nunca foi a intenção de Suu Kyi dar rédeas soltas à comissão.

O conselho era "idealizado mais como um 'grupo de amigos' para ajudar a melhorar a opinião internacional sobre Mianmar, mais que uma equipe forte para promover recomendações difíceis", disse Richard Horsey, um antigo analista político sediado em Yangon.

Semanas depois da primeira reunião do conselho em Naypyidaw, a capital de Mianmar, em janeiro passado, Richardson saiu.

"Ela está em negação, e não fala sério sobre enfrentar essa questão", disse ele sobre Suu Kyi. "Qualquer coisa que envolva mexer com os militares, ela não aceita. Ela tomará apenas algumas medidas de propaganda, como essas comissões."

Outros membros também se viram de mãos atadas. Kobsak Chutikul, um legislador aposentado e diplomata tailandês que deixou o conselho em julho, disse que muitas vezes usou dinheiro próprio para viajar pelo país, recusando-se a esperar a autorização da capital.

"Era um pouco aleatório, porque a comissão de Annan tinha verbas próprias, e nós não", disse Kobsak.

Mais tarde, autoridades do governo em Naypyidaw começaram a fazer remessas mensais de aproximadamente US$ 15 mil (R$ 61 mil) a Bangcoc para apoiar o trabalho do conselho, incluindo o aluguel de um escritório, mas nenhum foi alugado durante pelo menos seis meses. Ainda não houve pedido de contabilidade ou retorno desse dinheiro, segundo um membro do conselho.

Autoridades de Mianmar que supervisionam o conselho e seu financiamento não responderam a pedidos de comentários.

Na última quinta-feira (16), Surakiart foi convocado à capital. Ele apresentou o relatório final do conselho assessor, e este foi dissolvido, dando lugar a mais um órgão, uma comissão de inquérito sobre os desvios no estado de Rakhine.

Em uma entrevista coletiva na semana passada, sua presidente, uma diplomata filipina chamada Rosario Manalo, disse que não haveria "acusação a ninguém", embora a comissão tenha sido montada ostensivamente para realizar uma investigação visando a uma prestação de contas.

"Isto simplesmente segue em frente. No próximo ano haverá outra comissão, outro conselho", disse Kobsak. "É tudo fachada --nada é real. É uma farsa."

As comissões foram formadas "para encontrar uma solução para a crise de Rakhine que seja aceitável no país e no exterior", disse Zaw Htay, um porta-voz do governo de Mianmar. Suu Kyi fez questão em seu discurso de salientar o trabalho da comissão de inquérito, que segundo ela começará a trabalhar na próxima semana.

Mas os militares de Mianmar refutaram até os pequenos esforços de Suu Kyi de examinar sua conduta no estado de Rakhine. Qualquer punição pelos erros, segundo um ex-general que falou sob a condição do anonimato, será conduzida pelos militares sem interferência civil.

Em meio à discussão, o governo de Mianmar prometeu reassentar centenas de milhares de refugiados que hoje estão em Bangladesh e assinou um acordo com a ONU para ajudar nesse esforço. Ele prometeu fechar os acampamentos existentes em Rakhine como sinal de boa vontade e um indício aos que estão em Bangladesh de que é seguro voltar.

Mas o acesso humanitário continua duro para os rohingyas, e as agências de ajuda não conseguem acessar livremente as comunidades no norte do estado de Rakhine. O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento pediram autorizações para viajar às áreas em conflito em 14 de junho e continuam esperando.

Aung Tun Thet, que coordena o trabalho humanitário e de desenvolvimento para o governo de Mianmar no estado de Rakhine, disse que as autorizações estão no processo de emissão, mas a situação no local "continua fluida" e "arriscada".

"O governo de Mianmar não é confiável. Eles nunca fazem o que prometem sobre o povo rohingya. Eles estão nos trapaceando há décadas", disse Muhammad Saeed, um líder da comunidade rohingya em Sittwe.

"Os rohingyas de Mianmar [têm uma] mensagem para seus amigos e parentes que fugiram para Bangladesh", disse ele. "Se vocês voltarem a Mianmar, será como entrar no inferno."

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