Descrição de chapéu The Washington Post

Um ano após protesto de extrema direita, Charlottesville continua ferida

Cidade passou a maior parte do tempo lembrando, se recuperando, analisando e fazendo acusações

Placa aparece na parte de baixo da estátua, com a mensagem: "Apenas funcionários da prefeitura. Não ultrapasse"
Estátua do líder escravocrata Robert E. Lee é cercada um ano depois de que sua retirada levou a um protesto da extrema direita americana que deixou três mortos - Steve Helber - 6.ago.18/Associated Press
Joe Heim
Charlottesville (Virgínia) | Washington Post

Não há cicatrizes visíveis em Charlottesville. Continua sendo uma cidade linda e verdejante de 50 mil habitantes, com um centro pujante, ótimos restaurantes, uma vida noturna animada e as amenidades culturais e intelectuais de sediar a universidade mais famosa do Estado e um importante hospital.

Se a aparência externa não mudou, porém, os que vivem aqui sabem como a cidade está ferida e como a recuperação tem sido tensa. Em 12 de agosto a cidade completará um ano desde que o ódio racial mostrou suas garras aqui, ameaçando uma comunidade e um país. 

Haverá orações, música e tributos aos feridos e mortos. Está sendo chamado de um dia para lembrar e se curar, depois de um ano tumultuado e muitas vezes doloroso.

Charlottesville, na Virgínia (leste dos EUA), passou a maior parte dos últimos 12 meses lembrando e se recuperando. Ela também esteve analisando e fazendo acusações. Houve muito para se examinar. 

Acusação à polícia, que não protegeu os cidadãos. Acusação à Câmara de Vereadores e ao governo local e estadual, que planejaram sem eficácia. Acusação à universidade, que não comunicou o perigo à comunidade. Acusação ao presidente Donald Trump, por não se manifestar claramente condenando os manifestantes que expuseram seu racismo.

O verdadeiro dano foi para a psique da cidade e sua autopercepção, segundo moradores. Eles notam que Charlottesville hoje é conhecida como o lugar do maior encontro do racismo branco dos EUA em décadas. 

E eles sabem que sua comunidade é definida até certo ponto pela violência racial que irrompeu em 12 de agosto durante o comício “Unir a direita” e na noite anterior, quando 200 autodeclarados supremacistas brancos marcharam pelo campus da Universidade da Virgínia entoando “Nosso sangue, nossa terra!” e “Judeus não vão nos substituir!”

Chegar a um acordo com isso significou coisas diferentes para pessoas diferentes. Alguns moradores querem deixar tudo no passado e se dedicar a recuperar a reputação da cidade. Outros querem que os moradores se envolvam em difíceis discussões sobre raça e a história da cidade com a escravidão, Jim Crow e a segregação.

“Muita gente aqui ficou desconfortável com o que aconteceu em 12 de agosto e disse: ‘Vamos nos unir e seguir em frente’”, disse Zyahna Bryant, 17, uma estudante e ativista que vai para o último ano do colegial em Charlottesville. 

“Mas não houve o trabalho de recuar e admitir o racismo branco. Antes que possamos seguir adiante e nos curar como comunidade, temos de admitir isso.”

Para Bryant e outros, significa abordar a gentrificação e a escassez de habitação acessível na cidade, pôr fim ao policiamento com revistas pessoais, melhorar as oportunidades educacionais e, muito importante, segundo Bryant, “amplificar as vozes e experiências das pessoas de cor, que são desproporcionalmente afetadas pela violência racial”.

Também significa admitir que o racismo institucional existe como uma força poderosa aqui. Os críticos mais veementes dizem que a Charlottesville moderna se orgulha de ser uma cidade progressista e liberal, mas nunca reconciliou seu presente com seu passado racista. 

Eles dizem que a cidade e a universidade não chegaram a um acordo com sua história de ser construída, enriquecida e sustentada por pessoas escravizadas e de continuar sendo, na maior parte do século 20, uma cidade segregada que comemorava os vestígios da Confederação, em vez de deixá-los de lado. 

A violência de agosto de 2017 despedaçou as concepções que alguns moradores tinham de seu lar. Havia um desejo de ver os brancos racistas como invasores e forasteiros, embora dois dos organizadores, Jason Kessler e Richard Spencer, fossem formados na Universidade da Virgínia e Kessler more na cidade.

Charlottesville precisaria examinar mais de perto o que representava. “Perdemos a ingenuidade”, disse Kathy Galvin, 62, uma vereadora que vive em Charlottesville desde 1983. “É fácil se reconfortar em todos os elogios que recebemos até aquele ponto. ‘Cidade mais inovadora, a cidade mais feliz.’ 

Mas muitos de nós sabiam que tínhamos bolsões entrincheirados de pobreza que também eram definidos por raça e eram legados de Jim Crow.”

O processo foi difícil, mas também humilhante, disse Galvin. “Não podemos fingir que viramos uma esquina ou que estamos além da culpa”, disse ela. “Então isso deu origem à introspecção e à meditação.”

Também deu lugar a ódio e protestos. As consequências de 12 de agosto estão em toda parte. O chefe de polícia da cidade se demitiu. O contrato do gestor municipal não foi prorrogado. 

Reportagens incisivas criticaram a reação da cidade e da universidade. Em novembro, uma importante crítica da câmara local, Nikuyah Walker, foi eleita para o órgão e escolhida pelos outros membros como a primeira prefeita mulher da cidade. 

A tensão sobe e desce, mas não acaba. As sessões da câmara foram frequentemente perturbadas pelos que acreditam que suas preocupações não estão sendo abordadas. Os moradores relatam advertências de que os brancos racistas estão tramando um retorno. 

Kessler tentou obter uma autorização para um comício de aniversário. Ele retirou o pedido e está esperando realizar um em Washington no mesmo dia. Houve um alívio geral em Charlottesville por ele ter desistido do plano inicial, mas permanece um resíduo de incerteza e medo.

“Eu não vou sair nesse dia”, disse Nydia Lee, 25, que mora em um conjunto habitacional da prefeitura no sul da cidade e viu no ano passado quando os racistas passaram ali perto. “Tivemos uma antevisão do que nossos ancestrais passaram, e foi assustador. Foi avassalador.”

Charlottesville não pode reescrever sua história do ano passado, assim como não pode a dos últimos 250 anos. Mas pessoas que moram aqui dizem que aprenderam lições, tiveram seus olhos abertos para verdades que antes não eram obrigadas a enfrentar. 

Caroline Polk e seu marido, Forrest Swope, são antigos moradores de Charlottesville que foram presenciar os brancos racistas marcharem em sua cidade. Eles estavam preparados para as manifestações, mas não para tamanho veneno.

“Olhe, nós somos brancos. Essa coisa não nos afeta diariamente”, disse Polk. “Se eu for parada por um policial, não me preocupo em levar um tiro. Só espero que o que aconteceu no ano passado motive as pessoas a ser mais unidas e denunciar o racismo quando o virem.”

Wes Bellamy disse que espera que as discussões e a consciência geradas pela violência do ano passado sejam transformadoras para a cidade. Bellamy, 31, é um vereador que ajudou a forçar a cidade a retirar uma estátua de Robert Lee de um parque no centro. 

A decisão de banir a estátua resultou em ameaças de morte e cartas de ódio e, em parte, foi o que levou os racistas brancos a escolher Charlottesville como local de sua manifestação.

Por enquanto a estátua permanece, presa em um limbo jurídico. Mas não é o momento de recuar, disse Bellamy, sentado a uma mesa externa do Mel’s Cafe em Charlottesville. 

“Se nós contornarmos os problemas, não iremos a lugar nenhum. Vamos pôr as coisas na mesa. É o que eu acho que fizemos nesta comunidade”, disse ele. “Só porque isso o deixa desconfortável não significa que não podemos falar a respeito.”

Em 12 de agosto deste ano, disse Bellamy, ele quer que as pessoas “saiam à rua e comemorem que estamos um ano mais fortes”. 

“Nós levamos um soco na cara, mas não fomos derrubados”, afirmou. “Vamos vencer essa luta. Mas precisamos ser resistentes.”

 

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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