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Aposentado e recluso, Bento 16 assoma à oposição a Francisco

Fato de papa emérito ter renunciado entra no cálculo de conservadores que pressionam pontífice atual

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O papa Francisco (esq.) e o papa emérito Bento 16 (dir.) se abraçam em cerimônia no Vaticano - L'Osservatore Romano - 28.jun.16/Associated Press
CHICO HARLAN Stefano Pitrelli Luisa Beck
Roma e Berlim | The Washington Post

Desde que Bento 16 se tornou o primeiro papa em seis séculos a abdicar do pontificado, passando a viver quase isolado em um mosteiro da Cidade do Vaticano, paira no ar uma dúvida sobre o impacto que pode ter sobre a Igreja Católica a presença de dois papas vivos.

Os fatos da semana passada dão algum indício da resposta.

Muitas pessoas esperavam ouvir alguma reação de Bento diante das novas alegações de que o acobertamento dos casos de abuso sexual teria alcançado os mais altos escalões da igreja. Mas ele determinou que um papa emérito deve se ater a um voto de silêncio sobre questões da igreja —mesmo em tempos de crise, e apesar de ele estar particularmente bem posicionado para confirmar ou desmentir as acusações.

Alguns observadores do Vaticano dizem que o simples fato de Bento ter abdicado, em 2013, torna o papado moderno mais vulnerável, encorajando as vozes de dissensão. Dizem que seria difícil imaginar uma carta como a que foi divulgada na semana passada pelo arcebispo Carlo Maria Viganò, provocando o papa Francisco com um chamado pela renúncia dele, se Bento não tivesse criado a possibilidade de os papas modernos abrirem mão do pontificado ainda em vida.

Por mais que ele possa tentar ficar de fora da disputa, Bento vem sendo utilizado como símbolo de resistência por um segmento tradicionalista que se opõe ao papado reformista de Francisco e enxerga a visão de Bento do catolicismo como sendo mais alinhada com o dele.

“Bento não vai barrar a revolução de Francisco, mas sua presença nos recorda a possibilidade de outro caminho”, comentou Marcello Pera, amigo de Bento e ex-presidente do Senado italiano.

Conhecido no passado como o “Rottweiler de Deus”, Bento não chegou a ter a adesão global dos católicos durante seu pontificado, que durou oito anos. Mas conquistou admiração pela profundidade de seu trabalho acadêmico e sua convicção de que os ensinamentos da Igreja não deveriam se adaptar aos tempos.

Aos 91 anos, Bento ainda se assemelha em muito ao teólogo firme e resoluto que renunciou ao pontificado cinco anos atrás, quando tomou o microfone para transmitir uma breve mensagem em latim que causou choque na Igreja Católica. Ele ainda usa vestes papais brancas. Optou por não voltar a usar seu nome de batismo, Joseph Ratzinger.

Seus amigos dizem que ele está fisicamente fragilizado, movendo-se com a ajuda de um andador, mas mentalmente arguto. Em carta enviada ao jornal italiano Corriere della Sera no início do ano ele disse que estava “numa peregrinação para o Lar”.

Alguns historiadores dizem que, a despeito de todo o trabalho teológico de Bento, seu legado será definido sobretudo por sua renúncia. Antes dele, nenhum papa desde Gregório 12, em 1415, se dispusera a abdicar do pontificado.

O papa Paulo 6º chegou a cogitar disso, segundo uma coletânea de seus documentos e cartas. Mas, segundo texto do padre jesuíta Thomas Reese, Paulo 6º, que morreu em 1978, temeu que se o fizesse isso poderia expor papas futuros a disputas entre facções.

O papa João Paulo 2º teria redigido uma carta de renúncia a ser apresentada no caso de ele sofrer uma condição física debilitante, mas ele não chegou a usá-la. Em vez disso, suas faculdades físicas deterioraram de modo doloroso e público enquanto ele enfrentava o mal de Parkinson.

Em 2013, depois de oito anos de pontificado, Bento virou do avesso as normas do papado moderno. Disse que tinha consciência da “gravidade desse ato”. Ele citou sua deterioração mental e física. Algumas pessoas próximas a ele disseram que Bento receou tornar-se um líder incapacitado como João Paulo 2º, com quem ele colaborara estreitamente por anos.

Mas restaram rumores sobre outros fatores que teriam contribuído para sua decisão, incluindo a possibilidade de chantagem ou pressões ligadas a escândalos na burocracia do Vaticano. Em 2014 Bento escreveu a um site italiano, o Vatican Insider, descrevendo como “simplesmente absurdas” as especulações sobre sua renúncia.

Oficialmente, as renúncias papais só são válidas se e quando forem feitas “livremente”.

Para Andrea Tornielli, jornalista veterano que cobre o Vaticano para o jornal italiano La Stampa, as ramificações plenas da renúncia de Bento levarão anos para ser conhecidas, mas a imagem que esse ato deixou é espantosa e desconcertante: dois homens usando o branco papal no interior do Vaticano.

“É uma espécie de duplicação da imagem”, falou Tornielli. “É uma novidade absoluta na história da Igreja.”

Bento tem buscado se distanciar de sua vida pública. Ele recebe visitantes ocasionais em sua casa, onde vive com um gato, cercado por livros e tendo uma vista da cúpula da basílica de São Pedro. Faz caminhadas à tarde no jardim do Vaticano. Fotos oficiais às vezes o mostram com o papa Francisco. Ocasionalmente ele comparece a missas públicas.

Elio Guerriero, biógrafo de Bento que conhece o papa emérito desde os anos 1980, diz que Bento está contente com seu cotidiano tranquilo. “Ele se tornou mais doce e afetuoso”, comentou.

As pessoas que visitaram Bento desde sua renúncia dizem que o papa emérito evita alimentar insurreições. Quatro anos atrás, após um indício de que Francisco pudesse relaxar as regras sobre a comunhão para católicos divorciados, um grupo de cardeais pediu a Bento que interviesse, segundo o jornal italiano La Repubblica.

Bento respondeu que não era o papa e não deveria se envolver, e, mais tarde, alertou Francisco reservadamente.

Marcello Pera, que coescreveu um livro com Bento, relata uma história semelhante sobre a falta de disposição do papa emérito em comentar as iniciativas de seu sucessor. Pera disse que visitou Bento pouco após a eleição de Francisco e manifestou suas apreensões em relação ao novo pontífice –que ele parecia ser mais politizado e estar mais disposto a adaptar seus ensinamentos a um público secular.

“Estou preocupado com a Igreja”, falou Pera.

“A Igreja é de Jesus Cristo”, Bento teria respondido. “Você não deve se preocupar.”

O secretário pessoal de Bento, o arcebispo Georg Gänswein, disse publicamente que Bento e Francisco não estão em “um relacionamento competitivo”.

Após a divulgação da carta de Viganò, Gänswein não respondeu a vários pedidos de declarações feitas pelo Washington Post. Mas disse a uma publicação alemã que Bento não vai comentar a carta, nem agora nem no futuro.

O silêncio de Bento em relação a esse caso condiz com seu esforço para manter um perfil baixo. Mas também chama a atenção porque a carta cita especificamente a Bento e a Francisco, dizendo que tiveram conhecimento durante anos dos abusos cometidos pelo ex-cardeal agora desacreditado, Theodore McCarrick.

Viganò alega que em 2009 ou 2010 Bento, agindo reservadamente, impôs sanções a McCarrick (o ex-arcebispo de Washington e uma das figuras mais conhecidas da igreja nos Estados Unidos), após anos de avisos sobre a conduta sexual deste. Em sua carta, ele alega que Francisco “não levou em conta” essas sanções e, em vez disso, fez de McCarrick seu “conselheiro de confiança”.

Alguns elementos do relato parecem não se sustentar. As sanções descritas por Viganò teriam proibido McCarrick de viajar e participar de encontros públicos, mas McCarrick continuou a dar palestras regularmente e a fazer viagens ao exterior.

Dois conhecidos de Bento dizem que, como pontífice, ele foi um gestor fraco e que, mesmo que tivesse imposto as sanções, talvez não tivesse os meios de implementá-las.

“Bento nunca teve vocação para governar, para comandar”, disse Vittorio Messori, amigo de Bento que o visitou no ano passado. “Ele não sabe governar.”

Outros aliados de Bento chegam a interpretar o silêncio do papa como uma confirmação do relato de Viganò. A carta deste retrata Bento sob ótica mais positiva que Francisco e observa que, como cardeal, Ratzinger “denunciou reiteradamente a corrupção” no interior da igreja.

“Seria muito fácil para o papa Bento dizer ‘há um ataque contra o Santo Padre e quero condenar esse ataque’”, falou Roberto de Mattei, presidente da conservadora Fundação Lepanto, crítico de Francisco e conhecido de Viganò. “No momento, um papa pode falar em defesa de outro. Mas Bento não o fez.”

Apesar do silêncio geral de Bento, ou possivelmente devido a ele, alguns conservadores vêm apontando para o papa emérito como aliado simbólico deles. Alguns acadêmicos, jornalistas e funcionários do Vaticano vêm promovendo conferências frequentes com o propósito de criticar Francisco e, às vezes, elogiar os ensinamentos de Bento. Viganò discursou em pelo menos um desses eventos.

Em um livro recém-lançado, uma compilação de entrevistas, um prefácio escrito pelo ex-diretor do Banco do Vaticano exalta “a grandeza de nosso querido Joseph Ratzinger”. Entre os entrevistados estavam dois jornalistas que Viganò consultou antes da divulgação de sua carta.

Mas, mesmo entre esse grupo que conhece Bento, há um jogo constante de adivinhação para tentar decifrar o que ele pensa realmente.

Marcello Pera disse que não voltou a falar do papa Francisco em seus encontros com Bento, nos quais eles conversaram sobre filosofia e direitos humanos. “Esse tópico é proibido”, ele disse.

“Então o que devo concluir disso? Bento provavelmente não gosta do que está acontecendo. Mas não sabemos.”

Tradução de Clara Allain

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