Descrição de chapéu The New York Times

Crianças sentem efeitos da austeridade no Reino Unido

Redução nos benefícios sociais pelo Partido Conservador explica em parte aumento de menores em pobreza

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Patrick Kingsley

Era 8h30 e o dia letivo estava começando na escola primária pública Morecambe Bay, em Morecambe, no noroeste da Inglaterra. A diretora, Siobhan Collingwood, apontou para um garoto alegre que devorava duas torradas –sua primeira refeição do dia.

Ela contou que as professoras às vezes o encontravam vasculhando latas de lixo em busca de frutas jogadas fora. “Ele devorava tudo que lhe dávamos.”

Alguns alunos chegaram sem parar no refeitório; já haviam comido em casa. Mas algumas dezenas foram diretamente ao balcão de comida. Dos 350 alunos da escola, a diretora calculou que um em cada três não tomaria o café da manhã se a escola não o oferecesse.

Em seus 13 anos como diretora da escola Morecambe Bay, diz Collingwood, sempre houve algumas crianças que passavam fome. Dois anos atrás, porém, os professores e funcionários notaram um número crescente de crianças que voltavam à escola subnutridas depois das férias escolares passadas em casa.

Em um primeiro momento, Collingwood e sua equipe ficaram perplexas: muitos dos pais estavam empregados, embora tivessem dificuldade para pagar suas contas. Então elas perceberam que o aumento do número de alunos que passavam fome coincidira com uma redução grande nos benefícios sociais, ligada à introdução desastrada de um novo programa de bem-estar social.

Students line up for their lunch at Morecambe Bay Primary School, in Morecambe, England, May 2, 2018. Changes to welfare benefits and funding cuts are driving the working poor into crisis ? and reversing a long-term decline in the childhood poverty rate. (Laura Boushnak/The New York Times)
Alunos fazem fila para almoçar na escola primária de Morecambe Bay, na Inglaterra - Laura Boushnak - 2.mai.18/The New York Times

“Conversando com os pais”, disse a diretora, “ficou claro que, para muitos, o problema foi causado pelas mudanças adotadas nos últimos anos no sistema de benefícios sociais, mudanças que estão deixando famílias em crise”.

Em todo o Reino Unido, o número de crianças que vivem na pobreza subiu nitidamente nos últimos seis anos, uma tendência que críticos atribuem em parte à política de austeridade do governo conservador, adotada em resposta à crise financeira de 2008. Os cortes nos gastos públicos estão alterando a vida britânica profundamente.

E não há alívio imediato à vista. A Rede de Câmaras de Condados, que reúne órgãos governantes locais, avisou recentemente que em 2019 serão feitas reduções orçamentárias de US$ 1 bilhão (cerca de R$ 4 bilhões) em todo o país, drenando mais dinheiro dos serviços sociais, incluindo alguns voltados às crianças.

Que fique claro: o Reino Unido não é a Venezuela. Relatos sobre crianças famintas indo a médicos de Morecambe com raquitismo mostraram ser falsos. Mas isso não chega a se constituir em grande alívio em um dos países mais ricos do mundo e que, ao longo dos anos, assumiu um compromisso profundo com o bem-estar infantil.

Siobhan Collingwood, head teacher of Morecambe Bay Primary School, joins students for breakfast at the school in Morecambe, England, May 2, 2018. Changes to welfare benefits and funding cuts are driving the working poor into crisis ? and reversing a long-term decline in the childhood poverty rate. (Laura Boushnak/The New York Times)
Siobhan Collingwood, professora da escola primária de Morecambe Bay Primary School, na Inglaterra, se junta a alunos para café da manhã na escola - Laura Boushnak - 2.mai.18/The New York Times

Embora a fome não seja a única patologia social associada à pobreza infantil, talvez seja a que é mais difícil esconder. Nesse sentido, é um sinal de alerta para um problema que vem crescendo.

As consequências da pobreza podem ser graves para crianças. No curto prazo, a pobreza eleva o risco de doenças, fome e estigma social. No longo prazo, pode criar um ciclo vicioso do qual a criança tem dificuldade em escapar, especialmente no Reino Unido, em que a consciência de classe é muito grande.

Antes da crise financeira de 2008 e do subsequente arrocho do orçamento público, sucessivos governos britânicos, tanto conservadores quanto trabalhistas, haviam conseguido avanços no combate à pobreza infantil.

Entre 1998 e 2012 o número de menores de idade vivendo em “relativa pobreza” –famílias com renda familiar anual inferior a 60% da renda média nacional, sem contabilizar os custos habitacionais— caiu em aproximadamente 800 mil, para 3,5 milhões, ou 27% dos britânicos com até 16 anos de idade.

Mas no mesmo ano em que o Parlamento aprovou a Lei de Reforma do Bem-Estar Social, um elemento central do programa de austeridade, essa tendência começou a ser revertida: desde 2012, cerca de 600 mil crianças voltaram a cair na “relativa pobreza”.

Nesse mesmo período, o número de crianças que precisam de doações de alimentos da Fundação Trussell, a maior rede nacional de bancos de alimentos, mais que triplicou, passando de quase 127 mil para mais de 484 mil.

Students decorate a cake in the kitchen lab at Morecambe Bay Primary School, in Morecambe, England, May 2, 2018. Changes to welfare benefits and funding cuts are driving the working poor into crisis ? and reversing a long-term decline in the childhood poverty rate. (Laura Boushnak/The New York Times)
Alunos decoram bolo em laboratório de culinária na escola primária de Morecambe Bay, na Inglaterra - Laura Boushnak - 2.mai.18/The New York Times

Desde que voltou ao poder em 2010, o Partido Conservador anunciou mais de US$ 40 bilhões (R$ 162 bilhões) em cortes dos benefícios sociais e abandonou alvos anteriores de redução substancial da pobreza infantil até 2020.

Segundo previsão do Instituto de Estudos Fiscais, organização de pesquisas econômicas sediada em Londres, a previsão é que até 2021 cerca de 35% de todos os menores de idade britânicos sejam pobres.

E, segundo estimava conjunta de sete grandes entidades beneficentes que atuam com crianças, a prevista saída do país da União Europeia pode aprofundar o problema, devido à alta do custo de vida e a perda repentina das verbas recebidas de Bruxelas para crianças e adolescentes.

Em novembro o relator especial das Nações Unidas sobre pobreza extrema, Philip Alston, fará uma visita oficial ao Reino Unido para investigar a ligação entre o programa de austeridade e o aumento da pobreza. Será a primeira visita desse tipo ao Reino Unido feita por um relator especial da ONU sobre pobreza extrema.

“Especialmente para pessoas que trabalham com crianças, está cada vez mais claro que enfrentamos uma crise de pobreza infantil”, disse Alison Garnham, executiva-chefe da entidade assistencial britânica Child Poverty Action Group. “E isso se deve principalmente aos cortes enormes nos benefícios sociais.”

Os líderes do Partido Conservador que implementaram o programa de austeridade discordam que ele seja a causa da pobreza infantil crescente ou mesmo que a pobreza infantil esteja crescendo. Argumentam que o novo sistema que reúne a maioria dos benefícios em um só, conhecido como crédito universal, é melhor que o sistema anterior.

O novo sistema “é infinitamente melhor que o sistema que veio substituir”, disse o ex-ministro conservador Iain Duncan Smith, que comandou as mudanças. “O processo de entrar na força de trabalho foi facilitado.”

Esse argumento está sendo questionado. Embora o desemprego tenha sido reduzido em mais de 50% sob o governo conservador, o índice de pobreza infantil subiu. E, segundo o Instituto de Estudos Fiscais, dois terços das crianças pobres têm pelo menos um dos pais trabalhando.

“Costumamos contar a história totalmente errada sobre a pobreza no Reino Unido”, disse Garnham. “O governo costuma focar sua atenção sobre famílias desempregadas, mas elas praticamente não existem mais. Esse é um problema do passado.”

Tradução de Clara Allain

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.