Descrição de chapéu The Washington Post Governo Trump

Trump é enganado por aliados para não deixar EUA em risco, relata livro de Woodward

Presidente propôs matar Assad e foi ludibriado para manter Nafta, diz repórter que expôs Watergate

Philip Rucker
The Washington Post

John Dowd estava convencido de que o presidente Donald Trump cometeria perjúrio se falasse com o procurador especial Robert Mueller. Assim, em 27 de janeiro, o então advogado pessoal do presidente conduziu uma sessão de treinamento para demonstrar sua tese.

Na residência da Casa Branca, Dowd salpicou Trump com perguntas sobre a investigação da Rússia, provocando tropeços, contradições e arrancando mentiras até que o presidente acabou perdendo a paciência. 

"Isto é uma farsa maldita", irrompeu Trump, iniciando um lamento de 30 minutos que terminou com ele dizendo: "Eu realmente não quero depor".

A cena dramática e até agora desconhecida é narrada em "Fear" (medo), um livro ainda inédito de Bob Woodward —jornalista que com Carl Bernstein revelou nas páginas do Washington Post o escândalo que culminaria no fim do governo de Richard Nixon em 1974, o Watergate. Ele pinta um retrato perturbador da presidência Trump, com base em longas entrevistas com autoridades do governo e outras pessoas. 

Woodward escreve que seu livro se baseia em centenas de horas de entrevistas com participantes e testemunhas em primeira mão, que foram conduzidas em off —isto é, a informação poderia ser usada, mas ele não revelaria quem a forneceu.

Seu relato também se baseia em anotações de encontros, diários pessoais e documentos do governo.

Woodward retrata a raiva e a paranoia de Trump diante do inquérito da Rússia como incessantes, às vezes paralisando a ala Oeste (coração do governo) da Casa Branca durante dias.

Sabendo da nomeação de Mueller em maio de 2017, Trump resmungou: "Todo mundo está querendo me pegar" —parte de um período de declarações que seus assessores chocados compararam aos últimos dias de Richard Nixon como presidente. 

Uma cópia de 448 páginas do livro, a ser publicado pela editora  Simon & Schuster  em 11 de setembro próximo,  foi obtida por "The Washington Post". Woodward, um editor-associado do "Post", tentou conseguir uma entrevista com Trump por meio de várias pessoas, sem sucesso.

O presidente telefonou para Woodward no início de agosto, depois que o manuscrito estava terminado, para dizer que queria participar. O presidente se queixou de que seria um "livro ruim", segundo uma gravação da conversa. Woodward respondeu que seu trabalho seria "duro", mas factual e baseado em suas reportagens.

Um tema central do livro, que no Brasil deve ser lançado pela editora Todavia em novembro, são as maquinações furtivas usadas pelo círculo íntimo de Trump para tentar controlar seus impulsos e evitar desastres, tanto para o presidente pessoalmente como para o país que o elegeu.

Woodward descreve "um golpe de Estado administrativo" e um "colapso nervoso" do ramo Executivo, com assessores graduados conspirando para retirar documentos oficiais da mesa do presidente para que ele não os pudesse ver ou assinar.

Repetidamente, Woodward narra como a equipe de segurança nacional de Trump foi abalada por sua falta de curiosidade e conhecimento sobre assuntos mundiais e seu desprezo pelas perspectivas predominantes de líderes militares e da inteligência.

Em uma reunião do Conselho de Segurança Nacional em 19 de janeiro, Trump desconsiderou a importância da enorme presença militar dos EUA na península Coreana, incluindo uma operação de inteligência especial que permite que os EUA detectem um lançamento de míssil norte-coreano em 7 segundos (contra 15 minutos do Alasca), segundo Woodward.

Trump questionou por que o governo estava gastando recursos na região. 

"Estamos fazendo isso para impedir a Terceira Guerra Mundial", disse-lhe o secretário da Defesa, Jim Mattis.

Depois que Trump saiu da reunião, narra Woodward, "Mattis estava especialmente exasperado e alarmado, dizendo a interlocutores próximos que o presidente agia como um aluno da quinta ou sexta série, com nível de compreensão similar".

 

Na narrativa de Woodward, muitos assessores graduados ficaram diversas vezes irritados pelos atos de Trump e manifestaram opiniões sombrias a seu respeito.

"Os secretários de Defesa nem sempre podem escolher os presidentes para os quais trabalham", disse Mattis a amigos a certa altura, provocando risos, enquanto explicou a tendência de Trump a sair pela tangente sobre assuntos como imigração e a mídia noticiosa. 


Na Casa Branca, Woodward retrata um executivo instável, afastado das convenções da governança e propenso a criticar membros graduados do gabinete, aos quais incomoda e menospreza diariamente.
 

 

O chefe de gabinete da Casa Branca, John Kelly, frequentemente perdeu a paciência e disse a colegas que achava o presidente "confuso", escreve Woodward.

Em uma reunião de um pequeno grupo, Kelly disse sobre Trump: "Ele é um idiota. É inútil tentar convencê-lo de qualquer coisa. Ele está descarrilado. Estamos em Loucolândia. Não sei por que algum de nós está aqui. É o pior emprego que eu já tive". 

Reince Priebus, o antecessor de Kelly, temia que não conseguisse impedir Trump de provocar o caos.

Woodward escreve que Priebus chamava o quarto de dormir do presidente, onde Trump assistia obsessivamente a noticiários na TV a cabo e tuitava, de "oficina do diabo", e dizia que de manhã cedo e nas noites de domingo, quando o presidente costumava produzir tempestades de tuítes, eram a "hora da bruxa".

Trump aparentemente não tinha consideração por Priebus. Certa vez ele instruiu o então secretário de gabinete Rob Porter a que ignorasse Priebus, apesar de Porter estar subordinado ao chefe de gabinete, alegando que Priebus era "como um rato". "Ele sócorre de um lado para o outro."

Poucos na órbita de Trump estavam imunes a seus insultos. O presidente costumava zombar pelas costas do ex-assessor de segurança nacional H.R. McMaster, estufando o peito e forçando a respiração enquanto imitava o general aposentado, e certa vez disse que McMaster usa ternos baratos, "como um vendedor de cerveja".

​Trump disse ao secretário do Comércio Wilbur Ross, um rico investidor oito anos mais velho que ele: "Não confio em você. Não quero que você faça mais negociações. (...) Você está ficando velho".

 

Um alvo quase constante de destruidores ataques presidenciais é o secretário da Justiça, Jeff Sessions.

Trump disse a Porter que Sessions era um "traidor" por se recusar a supervisionar a investigação da Rússia, escreve Woodward. Zombando do sotaque de Sessions, Trump acrescentou: "Esse cara é um retardado. É um sulista burro. (...) Não podia nem ser um advogado pessoal no interior do Alabama".

Em um jantar com Mattis e o general Joseph Dunford Jr., o presidente do Comando Militar Conjunto, entre outros, Trump atirou contra um de seus críticos declarados, o senador republicano John McCain, do Arizona.

Ele sugeriu falsamente que o ex-piloto da Marinha foi um covarde ao sair de um campo de prisioneiros de guerra no Vietnã mais cedo, porque seu pai era um militar graduado, e deixar os outros para trás.

Mattis rapidamente corrigiu seu chefe: "Não, senhor presidente, acho que o senhor entendeu ao contrário".

O secretário da Defesa explicou que McCain, que morreu em 25 de agosto deste ano, havia na verdade recusado a libertação prematura e foi brutalmente torturado durante cinco anos na "Hanói Hilton", o centro de tortura usado pelos vietnamitas.

"Ah, ok", respondeu Trump, segundo o relato de Woodward. 

Sendo impossível conter a ira e a contestação de Trump, membros do gabinete e outras autoridades graduadas aprenderam a agir discretamente.

Woodward descreve uma aliança entre os tradicionalistas de Trump —incluindo Mattis e Gary Cohn, o ex-principal assessor econômico do presidente— para impedir o que eles considerassem atos perigosos.

 

"Parecia que estávamos eternamente andando na beira do precipício", teria dito Porter. "Noutras vezes, caíamos pelo precipício e uma atitude era tomada."

Depois que o líder sírio Bashar al Assad lançou um ataque químico contra civis, em abril de 2017, Trump chamou Mattis e disse que queria assassinar o ditador. "Vamos matá-lo, porra! Vamos lá. Vamos matar toda essa gente de merda", disse Trump, segundo Woodward. 


Mattis disse ao presidente que faria isso. Mas depois de desligar o telefone disse a um assessor graduado: "Não vamos fazer nada disso. Vamos ser muito mais comedidos". A equipe de segurança nacional desenvolveu opções para o ataque aéreo mais convencional que Trump afinal ordenou

 

Cohn, um veterano de Wall Street, tentou conter o nacionalismo estridente de Trump em relação ao comércio.

Segundo Woodward, Cohn "roubou uma carta da mesa de Trump" que o presidente pretendia assinar para retirar formalmente os EUA de um acordo comercial com a Coreia do Sul. Cohn mais tarde disse a um interlocutor que tinha retirado a carta para proteger a segurança nacional e que Trump não percebeu sua falta.

Cohn fez um jogo parecido para impedir que Trump retirasse os EUA do Tratado de Livre Comércio da América do Norte (Nafta na sigla em inglês), algo que o presidente ameaçava havia tempo. 

Na primavera de 2017, Trump estava ávido para sair do Nafta e disse a Porter: "Por que não estamos fazendo isso? Faça seu trabalho. Você está me tapeando. Quero fazer isso". 

Sob ordens do presidente, Porter redigiu uma carta de notificação de saída do Nafta. Mas ele e outros assessores temiam que isso pudesse provocar uma crise econômica e de relações exteriores. Então Porter consultou Cohn, que lhe disse, segundo Woodward: "Não posso deter isso. Simplesmente vou tirar o papel da mesa dele". 

Apesar de diversas ameaças de Trump, os EUA continuaram nos dois pactos.

O governo continua negociando novas condições com a Coreia do Sul, assim como com seus parceiros no Nafta, o Canadá e o México. 

Cohn passou a ver o presidente como um "mentiroso profissional" e ameaçou se demitir em agosto de 2017 por causa do modo como Trump tratou uma manifestação racista que causou mortes em Charlottesville.  Ele, que é judeu, ficou especialmente abalado quando uma de suas filhas encontrou uma suástica em seu quarto no dormitório da faculdade. 

Trump foi duramente criticado por dizer inicialmente que "os dois lados" eram culpados. A pedido de assessores, depois ele condenou os "supremacistas" brancos e neonazistas, mas quase imediatamente disse a assessores: "Esse foi o maior erro de merda que cometi" e "o pior discurso que já fiz", segundo o relato de Woodward. 

Quando Cohn se encontrou com Trump para entregar sua carta de demissão depois de Charlottesville, o presidente lhe disse: "Isto é traição" e convenceu o assessor econômico a ficar. Kelly então confidenciou a Cohn que compartilhava seu horror pelo modo como Trump tratou a tragédia —e a fúria de Cohn contra Trump. 

"Eu teria pegado aquela carta de demissão e enfiado na bunda dele seis vezes", disse Kelly a Cohn, segundo Woodward. O próprio Kelly ameaçou sair várias vezes, mas não o fez.

Woodward ilustra como o medo na órbita de Trump se tornou generalizado durante o primeiro ano de sua presidência, deixando alguns membros do gabinete e da equipe presidencial confusos com a incompreensão do presidente sobre o funcionamento do governo e sua incapacidade e relutância a aprender.

A certa altura, Porter, que saiu em fevereiro depois de denúncias de abuso doméstico, foi citado dizendo: "Isto não é mais uma Presidência. Isto não é mais uma Casa Branca. É um homem sendo quem ele é". 

Tais momentos de pânico são uma característica comum, mas não a verdadeira força do livro de Woodward, que enfoca principalmente decisões substanciais e discórdias internas, incluindo as tensões com a Coreia do Norte, assim como o futuro da política americana no Afeganistão. 

Woodward relata diversos episódios de ansiedade no governo por causa do tratamento dado por Trump à ameaça nuclear de Pyongyang. Um mês depois da posse, Trump pediu a Dunford um plano para um ataque militar preventivo à Coreia do Norte, o que abalou o militar veterano.

No outono de 2017, enquanto Trump intensificava uma guerra de palavras com Kim Jong-un, chamando o ditador norte-coreano de "homenzinho foguete" em um discurso na ONU, assessores temeram que o presidente estivesse provocando Kim.

Mas, escreve Woodward, Trump disse a Porter que via a situação como um concurso de vontades: "Isto é totalmente sobre um líder contra outro. Homem contra homem. Eu contra Kim". 

O livro também detalha a impaciência de Trump com a guerra no Afeganistão, que se tornou o mais longo conflito dos EUA. Em uma reunião do Conselho de Segurança Nacional em julho de 2017, Trump admoestou seus generais e outros assessores durante 25 minutos, queixando-se de que os EUA estavam perdendo, segundo Woodward. 

"Os soldados em campo poderiam conduzir as coisas muito melhor que vocês", disse-lhes Trump. "Eles fariam um trabalho muito melhor. Não sei que diabos vocês estão fazendo."

Ele continuou perguntando: "Quantas mortes mais? Quantos membros perdidos a mais? Quanto tempo ainda vamos ficar lá?"

Os parentes do presidente, embora às vezes chamados de seus principais assessores por outros cronistas de Trump, são atores menores no relato de Woodward, que aparecem ocasionalmente na Ala Oeste e perturbam os adversários.

 

Woodward narra uma altercação cheia de palavrões entre Ivanka Trump, a filha mais velha do presidente e assessora sênior, e Stephen Bannon, então estrategista-chefe da Casa Branca. 

"Você é uma maldita assessora!", gritou Bannon a ela, dizendo que tinha de trabalhar por intermédio de Priebus, como os demais assessores. "Você anda por este lugar e age como se estivesse no comando, e não está. Você é uma assessora!"
 

Bob Woodward é visto de perfil, vestindo terno e segurando um sobretudo, num saguão de mármore escuro
O jornalista Bob Woodward chega a reunião com o então presidente eleito Donald Trump na Trump Tower, em Nova York, duas semanas antes da posse - Kena Betancour-3.jan.17/AFP

​Ivanka, que tinha acesso especial ao presidente e trabalhava contornando Priebus, respondeu: "Não sou uma assessora. Sou a primeira-filha". 

Tais tensões ferviam entre muitos dos principais assessores de Trump. Priebus é citado descrevendo os assessores de Trump não como rivais, mas como "predadores naturais".

"Quando você coloca uma cobra e um rato e um gavião e um coelho e um tubarão e uma foca em um zoológico sem paredes as coisas começam a ficar feias e sangrentas", disse Priebus.

Pairando sobre a Casa Branca estava o inquérito de Mueller, que embaraçava profundamente o presidente.

Woodward descreve Trump chamando seu colega egípcio para garantir a libertação de um funcionário de organização beneficente preso, e o presidente Abdel Fatah al-Sisi dizendo: "Donald, estou preocupado com essa investigação. Você vai estar por aí?"

Trump passou a conversa para Dowd e disse que foi como "um chute no saco", segundo Woodward. 

 

O livro narra vividamente o atual debate entre Trump e seus advogados sobre se o presidente deveria fazer uma entrevista com Mueller.

Em 5 de março, Dowd e o advogado de Trump Jay Sekulow se reuniram no escritório de Mueller com o procurador-especial e seu vice, James Quarles, onde Dowd e Sekulow reencenaram o ensaio de Trump em janeiro. 

Dowd então explicou a Mueller e Quarles por que estava tentando impedir que o presidente depusesse:

"Não vou ficar lá parado e deixar que ele pareça um idiota. E você publique essa transcrição, porque tudo vaza em Washington, e os caras no exterior vão dizer: 'Eu lhe disse que ele era um idiota. Eu disse que ele era um maldito pateta. Para que estamos tratando com esse idiota?'"

"John, eu entendo", respondeu Mueller, segundo Woodward. 

Mais tarde naquele mês, Dowd disse a Trump: "Não deponha. É isso ou a roupa laranja [de presidiário]".

Mas Trump, preocupado com a óptica de um presidente se recusando a depor e convencido de que poderia lidar com as perguntas de Mueller, já tinha decidido em contrário. 

"Serei uma testemunha super boa", disse Trump a Dowd, segundo Woodward. 

"O senhor não é uma boa testemunha", respondeu Dowd. "Senhor presidente, tenho medo de que eu não possa ajudá-lo."

Na manhã seguinte Dowd se demitiu.

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves 

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