Ícone do Ocidente, ex-presidente da Geórgia quer recuperar nacionalidades

Exilado na Holanda, Mikheil Saakashvili diz ter sido vítima de corruptos no seu país e na Ucrânia

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São Paulo

De ícone das democracias ocidentais na luta contra a Rússia de Vladimir Putin ao posto único no mundo de ex-chefe de Estado privado de duas nacionalidades e alvo de investigações criminais.

“Isso nunca aconteceu na história. É o preço de confrontar as elites corruptas em dois países”, diz o personagem do arco narrativo acima, o georgiano Mikheil Saakashvili.

Ele falou por telefone à Folha de Amsterdã, na Holanda, onde vive desde fevereiro como estrangeiro casado com uma local. “Viajo com um passaporte especial, mas acredito que vá retomar minhas cidadanias em breve”, afirma.

Como ele chegou lá? Saakashvili, meros 50 anos, é um personagem central da história de seu país neste século.

O ex-presidente georgiano Mikheil Saakashvili na saída de um hotel em Kiev, na Ucrânia 
O ex-presidente georgiano Mikheil Saakashvili na saída de um hotel em Kiev, na Ucrânia  - Serguei Supinsky - 9.fev.2018/AFP

Fomentado pelos Estados Unidos e pela Europa, ele liderou a primeira das chamadas revoluções coloridas contra governos de repúblicas ex-soviéticas alinhados a Moscou.

O presidente caiu e novas eleições ocorreram, ungindo Saakashvili com 96% dos votos. Seu mandato foi marcado por uma reestruturação do sistema judicial e policial do país, na frente interna, que lhe rendeu acusação de autoritarismo e até brutalidade.

No campo externo, reformou o poderio militar e caiu nos braços dos novos aliados.

A capital, Tbilisi, chegou a ganhar uma avenida com o nome do impopular presidente americano George W. Bush. Placas anunciavam que a prioridade do país era se unir à União Europeia e ao braço militar do Ocidente, a Otan.

Isso Putin não permitiu. Aproveitando o que analistas chamam de afoiteza excessiva de Saakashvili em escaramuças com tropas aliadas de Moscou no território da Ossétia do Sul, promoveu cinco dias de guerra em 2008.

Saakashvili havia sido reeleito naquele ano, e perdeu cerca de 20% de seu país.

“Não me arrependo de nada. Tínhamos duas opções, a ruim e a pior. Eu optei pela ruim, que era resistir”, afirma o ex-presidente, que guarda rancor contra os antigos aliados.

“Na época, os EUA foram ambivalentes. Agora, vejo Condi afirmar que eu estava errado. Levaram dez anos para dizer isso?”, disse, referindo-se a declarações da ex-secretária de Estado Condoleezza Rice sobre os fatos de 2008.

De todo modo, ele continuou a receber apoio financeiro do Ocidente, enquanto o Kremlin estabeleceu limites à expansão a leste da Otan.

O segundo mandato do georgiano foi pressionado. Entidades de controle começaram a apontar um crescimento na corrupção estatal e favorecimento a empresários próximos do poder.

A derrota num pleito parlamentar selou a impossibilidade de buscar nova reeleição em 2013, e a partir daí começaram a surgir diversos procedimentos criminais contra ele —culminando num processo por desvio de dinheiro público que pode lhe dar 11 anos de cadeia.

Morando inicialmente nos EUA, Saakashvili começou a apoiar a revolta que derrubou o governo pró-Moscou na Ucrânia, no começo de 2014. Sua proximidade com o país era antiga: o georgiano estudou direito em Kiev, onde foi colega de Petro Poroshenko.

Um rico oligarca nos anos que se seguiram, Poroshenko foi eleito presidente em 2014. Convidou o amigo para ser seu assessor.

Putin odiou a aliança, segundo relatos. “Digamos que eu tenho muitos inimigos poderosos”, brinca Saakashvili.

Em 2015, Poroshenko ofereceu o governo da poderosa região de Odessa a Saakashvili, que teve de renunciar à cidadania georgiana e virar ucraniano para poder assumir.

Segundo disse um diplomata ocidental baseado na região, que pediu para não se identificar, o episódio resume o voluntarismo do ex-presidente, que perdeu apoio em casa em nome de poder imediato.

“Eu tentei fazer em Odessa o que fiz na Geórgia. Reforçar os mecanismos de controle da corrupção. Só que esbarrei em uma elite que controla tudo”, diz Saakashvili.

Em 2016, ele renunciou ao cargo de governador, acusou Poroshenko de ser corrupto e tentou montar um partido político. Àquela altura, tinha bons índices de popularidade, mas esse apoio esvaziou-se.

Para o diplomata, Saakashvili tentou dar um golpe no amigo. Ele nega. “Acho que ele não está à altura do desafio. A Ucrânia poderia ter virado um tigre do Leste”, afirma. “Mas é mais um regime dedicado ao enriquecimento pessoal do presidente”, completa.

O drama político ganhou então contornos surreais. Em julho de 2017, com o crescimento da popularidade do agora ex-amigo, Poroshenko revogou sua cidadania ucraniana. Há cerca de 10 milhões de apátridas no mundo, segundo a ONU, mas ele é o único ex-presidente conhecido na lista.

Saakashvili fugiu para a Polônia e, dois meses depois, fez uma reentrada triunfal a pé, cercado de centenas de apoiadores. Começou a ser processado imediatamente.

Circularam então no país questionamentos sobre a origem dos recursos do político —que estava com seus bens congelados na Geórgia.

“Num país em que oligarcas controlam 70% da economia, eu recebi apoio de pequenos empresários. Tiveram de fazê-lo de forma confidencial.”

Ele ficou em Kiev até que, em dezembro, o serviço secreto divulgou um vídeo no qual um aliado seu negociava receber recursos do grupo de Viktor Ianukovitch, o presidente derrubado em 2014. Ou seja, o maior inimigo de Putin receberia apoio de um político pró-Moscou.

“Isso é um absurdo”, rebate. “A Rússia é cínica, e diversos governos americanos foram enganados com a ilusão de que ela poderia compor com eles”, afirma. “Washington é a terceira cidade mais cara dos EUA para morar. Por quê? Muito dinheiro russo comprando políticos.”

Em 12 de fevereiro deste ano, ele foi deportado para a Polônia. Depois, foi condenado a até três anos de prisão por crime migratório. Acabou na Holanda de sua mulher, a linguista Sandra Roelofs, com quem tem dois filhos.

“Acho que a situação é temporária”, disse ele, que faz campanha pela adoção de urnas eletrônicas em países ex-soviéticos.

O político aposta nas eleições presidenciais de outubro em seu país natal e em março de 2019 na Ucrânia. “Meus apoiadores têm boas chances”, diz, no que é posto em dúvida pelos números não muito confiáveis de pesquisas locais.

A trama estrelada por Saakashvili parece longe do fim.

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