Descrição de chapéu The New York Times

Milhares de membros de minoria muçulmana são detidos pelo governo chinês

Uigures são levados a centros onde devem trocar a religião pelo Partido Comunista

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Chris Buckley
Hotan (China) | The New York Times

Na margem de um deserto no extremo oeste da China, um prédio imponente se ergue atrás de uma cerca coroada por arame farpado. Grandes caracteres vermelhos sobre a fachada incentivam as pessoas a aprender chinês, estudar as leis e adquirir qualificações profissionais. Guardas deixam claro que visitantes não são bem-vindos.

No interior do prédio, segundo detentos que já foram libertados, centenas de muçulmanos de etnia uigir passam seus dias seguindo um programa intensivo de doutrinação no qual são forçados a ouvir palestras, cantar hinos louvando o Partido Comunista chinês e redigir textos de “autocrítica”.

O objetivo é levá-los a abandonar sua devoção ao islã.

Abdusalam Muhemet, da etnia uigur, tinha um restaurante em Hotan, mas decidiu deixar o país e hoje vive em Istambul, na Turquia
Abdusalam Muhemet, da etnia uigur, tinha um restaurante em Hotan, mas decidiu deixar o país e hoje vive em Istambul, na Turquia - Erin Trieb/The New York Times

Abdusalam Muhemet, 41 anos, contou que a polícia o prendeu por recitar um verso do Alcorão em um funeral. Depois de passar dois meses internados num campo próximo, ele e 30 outros foram instruídos a renunciar à sua vida passada. Muhemet disse que concordou sem resistir, mas que em seu íntimo estava furioso.

“Aquele lugar não era próprio para derrotar extremismos”, ele comentou. “É um lugar que provoca sede de vingança e procura apagar a identidade uigur.”

Esse campo nos arredores de Hotan, cidade milenar erguida em volta de um oásis no deserto de Taklamakan, é um entre centenas construídos pela China nos últimos anos.

O lugar faz parte de uma campanha de escala e intensidade espantosas para reunir centenas de milhares de muçulmanos chineses, geralmente sem quaisquer acusações criminais, para serem submetidos a semanas ou meses de um processo descrito por críticos como lavagem cerebral.

Embora seja restrito à região de Xinjiang, no oeste da China, é o programa mais amplo de detenção de pessoas desde a era de Mao –e vem atraindo um coro crescente de críticas internacionais.

Há décadas a China procura restringir a prática do islamismo e conservar controle férreo sobre Xinjiang, uma região quase tão grande quanto o Alasca onde mais de metade dos 24 milhões de habitantes integram minorias étnicas muçulmanas.

A maioria dos habitantes é da etnia uigur, que preocupa Pequim há anos devido à sua religião, língua, cultura e história de movimentos separatistas e resistência ao governo chinês.

Depois de uma sucessão de violentos ataques antigoverno ter chegado ao auge em 2014, Xi Jinping, líder do Partido Comunista, intensificou fortemente a repressão na região, orquestrando uma campanha implacável para converter uigures e membros de outras minorias muçulmanas em cidadãos leais e seguidores do Partido.

Prédio em Hotan que testemunhas afirmam ser um dos centros usados pelo governo chinês
Prédio em Hotan que testemunhas afirmam ser um dos centros usados pelo governo chinês - The New York Times

Xi disse a autoridades, segundo relatos da mídia estatal em 2017: “Xinjiang está vivendo um período de atividade terrorista aguda, com luta intensa contra o separatismo e uma intervenção dolorosa para tratar o problema”.

Além das detenções em massa, as autoridades estão intensificando o uso de informantes e ampliaram a vigilância policial, chegando a instalar câmeras de vigilância nas casas de algumas pessoas.

Especialistas e ativistas de direitos humanos dizem que a campanha traumatizou a sociedade uigur, fraturando comunidades e famílias.

“A penetração da vida cotidiana é realmente quase total hoje”, disse Michael Clarke, especialista em Xinjiang na Universidade Nacional Australiana, em Canberra, a capital australiana. “A identidade étnica, em especial a identidade uigur, é o alvo principal, sendo tratada como se fosse uma espécie de patologia.”

A China nega categoricamente as denúncias de abusos cometidos em Xinjiang. Numa reunião de um painel da ONU em Genebra em agosto, Pequim disse que não opera campos de reeducação e descreveu as instalações em questão como instituições correcionais leves que oferecem formação profissional.

“Não há detenções arbitrárias”, disse Hu Lianhe, representante chinês que exerce um papel na política de Pequim em Xinjiang, ao Comitê das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação Racial. “Não existem centros de reeducação.”

O comitê pressionou Pequim para revelar quantas pessoas já foram detidas e libertá-las, mas o Ministério de Relações Exteriores chinês rejeitou o pedido, dizendo que é “sem base factual” e que as medidas de segurança tomadas são comparáveis às de outros países.

Mas o argumento de normalidade do governo é desmentido por evidências avassaladoras, incluindo ordens oficiais, estudos, relatos noticiosos e planos de construção que foram divulgados na internet, além de relatos em primeira mão de um número crescente de ex-detentos que fugiram para países como Turquia e Cazaquistão.

Os documentos do próprio governo descrevem uma vasta rede de campos –geralmente descritos como centros de “transformação por meio da educação”—que se multiplicou sem ser discutida publicamente, sem ter sido autorizado especificamente pelo Legislativo e sem qualquer sistema de apelação para os detentos.

O jornal The New York Times entrevistou quatro detentos recentes de Xinjiang que descreveram abusos físicos e verbais cometidos por guardas; rotinas exaustivas de cantos, palestras e reuniões de autocrítica; e a ansiedade de não saber quando seriam libertados.

Seus relatos foram ecoados em entrevistas com mais de uma dúzia de uigures que tiveram parentes nos campos ou que desapareceram. Muitos exigiram anonimato para falar, para evitar represálias do governo.

Moradores passam próximox a uma mesquitsa em Kashgar, na China; diversas minorias islâmicas vivem na região
Moradores passam próximox a uma mesquitsa em Kashgar, na China; diversas minorias islâmicas vivem na região - Gilles Sabrie - 10.dez.2016/The New York Times

O NYT também descobriu documentos online escritos por equipes de funcionários chineses encarregados de monitorar famílias com membros detidos, além de um estudo de 2017 segundo o qual as autoridades em algumas partes de Xinjiang estão enviando uigures aos campos de modo indiscriminado, para alcançarem cotas numéricas.

Escrito por Qiu Yuanyuan, acadêmica da Escola Partidária de Xinjiang, onde se formam funcionários do Partido, o estudo avisa que as detenções podem ter efeito oposto ao desejado e têm o risco de alimentar o radicalismo.

“A definição impensada de metas quantitativas para a transformação pela educação foi usada erroneamente” em algumas áreas, ela escreveu.

Em 2017 o governo de Xinjiang divulgou regras de “desrradicalização” que autorizam os campos, e hoje muitos condados têm vários campos cada um, segundo documentos do poder público que incluem pedidos de abertura de licitações de construtoras para construir os campos.

Nos documentos públicos, as autoridades locais às vezes comparam detentos a pacientes que precisam de isolamento e intervenções emergenciais.

“Qualquer pessoa infectada por um ‘vírus’ ideológico precisa ser encaminhada rapidamente ao ‘atendimento residencial’ das aulas de transformação pela educação, antes de a doença se manifestar”, diz um documento emitido por funcionários partidários em Hotan.

Não está claro quantos uigures, além de cazaques e membros de outras minorias muçulmanas, já passaram pelos campos. As estimativas variam entre várias centenas de milhares e possivelmente 1 milhão. Grupos de exilados dizem que o número real é ainda maior.

O governo chinês diz que está vencendo uma guerra contra o extremismo e separatismo islâmico, que ele culpa por ataques que fizeram centenas de mortos nos últimos anos. As informações sobre esses atos de violência são censuradas e incompletas, mas o número de incidentes parece ter caído muito desde 2014.

Mesmo assim, muitos que emergiram do programa de doutrinação dizem que ele vem endurecendo as atitudes públicas contra Pequim.

“Não adiantou nada”, disse o empresário cazaque Omurbek Eli, falando do tempo em que foi mantido em um campo em 2017. “O resultado será o oposto. As pessoas ficarão ainda mais resistentes à influência chinesa.”

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