Ortega persegue famílias de mortos, diz nicaraguense que perdeu irmão

Casas são pichadas e velórios destruídos, conta ativista que veio ao Brasil denunciar governo

Flávia Mantovani
São Paulo

Frases como "sabemos onde vocês moram" pintadas nas fachadas das casas. Um X vermelho e preto na calçada, marcando uma residência. Mensagens intimidadoras enviadas em redes sociais.

Ameaças assim assombram familiares de pessoas mortas durante a recente onda de violência na Nicarágua, levando-os a deixar tudo para trás e viver escondidos, afirma o nicaraguense Yader Parajón.

Yader, 27, está no Brasil representando o movimento Madres de Abril (mães de abril), formado por parentes de vítimas das forças do ditador Daniel Ortega, que comanda uma forte repressão a manifestantes há quase cinco meses. Com outras duas ativistas, o estudante de psicologia percorre a América do Sul para chamar a atenção para as violações aos direitos humanos pelo regime em Manágua.

O nicaraguense Yader Parajón, 27, mostra em seu celular a foto do irmão, Jimmy, que morreu assassinado por policiais
O nicaraguense Yader Parajón, 27, mostra foto do irmão, Jimmy, que morreu assassinado por policiais - Danilo Verpa/Folhapress

Uma dessas violações é a "revitimização": depois da morte de um manifestante —muitos deles, universitários—, policiais ou paramilitares que apoiam Ortega ameaçam os parentes, diz Yader. "Em algumas cidades, chegam a destruir velórios. Muita gente teve que deixar tudo e fugir para a Costa Rica, a Espanha."

Ele próprio passou por isso. Seu irmão, um mecânico de 35 anos, morreu baleado por um policial quando levava ajuda a estudantes acampados em uma universidade, em maio. "Veio o aviso pelo WhatsApp: 'atiraram no peito do Jimmy'. Quando cheguei, ele estava morto. Não conseguíamos nem pedir autópsia, o governo está negando até isso às pessoas", afirma.

Um mês depois, apareceu na calçada da casa da família o X vermelho e preto --cores da Frente Sandinista, partido de Ortega. "Apagamos a marca e decidimos esperar um pouco. Mas, dois dias depois, 300 policiais do choque vieram ao nosso bairro destruir barricadas. Ficamos aterrorizados e largamos tudo", conta Yader.

Hoje, seu pai, de 63 anos, vive escondido na casa de parentes. A mulher de Jimmy e seus cinco filhos também tiveram que se mudar.

Yader se uniu, então, ao movimento Mães de Abril, criado por três mulheres para buscar justiça para as vítimas. Segundo ele, são cerca de 200 integrantes. "Mesmo sendo uma organização pacífica, temos que nos encontrar de forma clandestina. A repressão está cada dia mais forte", diz.

Em maio, no Dia das Mães, o movimento organizou uma manifestação em homenagem às mães que perderam filhos. "Nesse dia, em duas horas, 20 pessoas foram assassinadas por policiais", afirma Yader.

Desde 18 de abril, o país da América Central vive uma onda de protestos pela saída do presidente Ortega e de sua mulher e vice, Rosario Murillo. 

A repressão deixou mais de 300 mortos, inclusive adolescentes. Em 23 de julho, a estudante brasileira Raynéia Gabrielle Lima, 31, foi morta a tiros em Manágua.

Nos últimos 11 anos, o ex-líder sandinista se consolidou no poder por meio de alterações na Constituição, da cassação de candidaturas, da expulsão de políticos de oposição do Congresso e de uma eleição questionada que lhe deu, em 2016, o terceiro mandato.

Além de Yader, estão percorrendo a América do Sul as ativistas Ariana McGuire e Carolina Hernández. O grupo, batizado de Caravana da Solidariedade, passou por Porto Alegre e pelo Rio de Janeiro e chegou a São Paulo no domingo (9). Antes, havia passado por Chile, Argentina e Uruguai. Saindo do Brasil, irá para o Peru.

A programação inclui palestras em universidades e conversas com integrantes de movimentos sociais e partidos políticos para relatar o que acontece em seu país, criar redes para ajudar os nicaraguenses e conseguir o apoio de governos e de políticos.

"Queremos que a esquerda assuma uma atitude crítica em relação ao que está acontecendo e condene as violações aos direitos humanos. Ortega diz que está sofrendo um golpe da direita, mas a verdade é que ele sequestrou os ideais do sandinismo e os deturpou. Agora, mais de 80% do povo é contra ele", diz Yader.

Os três nicaraguenses não sabem o que farão após a viagem, mas cogitam pedir asilo em um dos países visitado. "A imprensa oficial já nos classificou como terroristas", diz.

"Se voltarmos à Nicarágua, corremos o risco de sermos presos, torturados e mortos. Temos que nos proteger."

A passagem da Caravana de Solidariedade pelo país é financiada por nicaraguenses que moram no Brasil. Eles doaram recursos, fizeram campanha de financiamento online e hospedam os ativistas.

São cerca de 20 pessoas que vivem em cidades diferentes e se articularam em um grupo de WhatsApp chamado Coletivo de Nicaraguenses no Brasil.

Um deles é o cientista político Humberto Meza, que mora no Rio e faz pós-doutorado na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). "Quando começou a crise lá, a gente se organizou para ver o que poderíamos fazer daqui", disse.

Segundo Humberto, o interesse dos brasileiros aumentou após o assassinato da pernambucana Raynéia Lima.

Em São Paulo, a socióloga Maria Mercedes Salgado, 66, diz que uma das tarefas tem sido divulgar a violência na Nicarágua para brasileiros.

"Compartilhamos documentos e reportagens com conhecidos, professores universitários, políticos. Temos que nos posicionar, é uma questão de direitos humanos", afirma ela, no Brasil desde 1972.

Salgado, que foi diplomata em Brasília de 1982 a 1986, representando o governo sandinista, e fez mestrado na USP sobre a Frente Sandinista, diz que Ortega vem "se afastando de seus ideais" há tempo. Ela cita alianças com setores conservadores da Igreja Católica, perseguição a movimentos sociais e reformas constitucionais para perpetuar-se.

"As coisas não teriam acontecido assim se não fosse a repressão violenta do governo aos protestos de abril. Em três dias, já eram 23 mortos, a maioria estudantes. Isso provocou a ira da população".

 

Números da crise na Nicarágua

322
pessoas foram mortas de 18 de abril a 20 de agosto

23
crianças estão entre as vítimas

1
brasileira, estudante de medicina, foi morta no dia 23 de julho

6
​membros da mesma família, incluindo uma criança de 3 anos e um bebê, morreram após sua casa ser incendiada por policiais porque eles não permitirem o uso do telhado por franco-atiradores

2.000
pessoas ficaram feridas

1.900
pessoas foram detidas de abril a 25 de julho

23 mil
nicaraguenses pediram asilo na Costa Rica entre abril e julho

200
médicos foram demitidos arbitrariamente por atenderem manifestantes feridos

250
agressões a meios de comunicação foram registradas 

215 mil
pessoas perderam o emprego e 131 mil passaram para abaixo da linha da pobreza desde o início da crise

Fontes: Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos, CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos), ACNUR (Agência da ONU para Refugiados), Associação Médica da Nicarágua, CENIDH (Centro Nicaraguense de Direitos Humanos), Funides (Fundação Nicaraguense para o Desenvolvimento Econômico e Social)

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