Processo sobre Venezuela em corte internacional pode levar quase dez anos

Apuração de mortes em manifestações deve encontrar alguns obstáculos para avançar

Policial aparece à frente de área gradeada com manifestantes carregando cartazes contra Maduro. Uma bandeira venezuelana aparece grudada na grade.
Imigrantes venezuelanos participam de protesto contra o ditador Nicolás Maduro em frente à sede da ONU em Nova York nesta quinta-feira (27) - Seth Wenig/Associated Press
Paris

A Procuradoria do Tribunal Penal Internacional (TPI) confirmou, nesta quinta (27), ter recebido de seis países um pedido de investigação de crimes contra a humanidade supostamente cometidos pelo regime de Nicolás Maduro na Venezuela.

Mas a apuração deve encontrar alguns obstáculos para avançar, e uma eventual sentença poderia levar quase uma década para ser conhecida.

É o que diz a antropóloga francesa Elisabeth Claverie, coautora de um livro sobre Justiça internacional, que acompanha há anos o trabalho da corte instituída em 1998 e efetivamente em atividade desde 2002, em Haia (Holanda).

Sem conhecer os detalhes do documento submetido na quarta (26) por Argentina, Chile, Colômbia, Peru, Paraguai e Canadá, ela diz que talvez seja difícil caracterizar as violações perpetradas pela ditadura do país caribenho como crimes de lesa-humanidade, os quais precisam atender a certos parâmetros de amplitude e prática sistemática.

É possível que sejam considerados antes de tudo crimes políticos, explica a antropóloga, já que têm como pano de fundo o embate entre forças oficiais e opositores do regime. Nesse caso, eles escapariam à competência da corte.

Essa interpretação, no entanto, parece já ter sido afastada pela procuradora-geral Fatou Bensouda, que anunciou em fevereiro passado ter aberto uma análise preliminar sobre supostos crimes cometidos na Venezuela, tanto pelo Estado quanto por manifestantes civis, a partir de abril de 2017 —uma lista que, pelo lado do governo, inclui uso excessivo de força para reprimir protestos, detenções arbitrárias e recurso à tortura, entre outros.  

O documento de quarta-feira, o primeiro apresentado por Estados-parte do TPI contra outro país que integra o tribunal, acrescenta a essa relação assassinatos, execuções extrajudiciais e abusos sexuais, segundo disse o chanceler argentino, Jorge Faurie.

Além disso, solicita à Procuradoria que examine um período maior de violações presumidas, a partir de fevereiro de 2014.

Em julho de 2017, um grupo de 146 senadores do Chile e da Colômbia (liderado pelo agora presidente desta última, Iván Duque) havia exposto à corte um quadro semelhante.

Há três meses, foi a vez de o Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos enviar um relatório solicitando a implicação do TPI no enquadramento jurídico das violações atribuídas ao regime madurista.

O tribunal só se dedica a casos aos quais as cortes nacionais viram as costas deliberadamente ou àqueles que elas não conseguem tratar por falta de meios. O Judiciário venezuelano está hoje sob a tutela do ditador Maduro.

Segundo Elisabeth Claverie, outro fator que pode atravancar (ou impedir por completo) o prosseguimento da ação envolvendo a Venezuela no TPI é a delimitação exata da responsabilidade de Nicolás Maduro (e eventualmente de um ou mais de seus ministros ou chefes militares) nos crimes que lhe(s) forem imputados. O réu não pode ser um regime, um Estado, mas uma pessoa física, daí a dificuldade.

A especialista destaca ainda o tempo que a tramitação do processo na corte pode consumir. Ela dá como exemplo a ação envolvendo o ex-presidente da Costa do Marfim Laurent Gbagbo, acusado de ordenar uma repressão violenta contra segmentos da população que, assim como uma comissão eleitoral independente, não o reconheciam como vencedor de uma eleição que ele adiou seis vezes.

A investigação oficial começou em outubro de 2011, Gbagbo está preso em Haia desde novembro daquele ano, mas sua sentença só deve ser conhecida em janeiro de 2019.

A Procuradoria atribuiu a ele a arquitetura de crimes como ataques a representações de opositores, criação de postos militares de controle onde assassinatos eram perpetrados, deslocamento forçado de cerca de 1 milhão de pessoas e prisões arbitrárias, entre outros.

No caso da Venezuela, a fase atual do processo no TPI, conhecida como exame preliminar, prevê o envio de uma força-tarefa ao país em questão e uma primeira rodada de consultas a instituições internacionais, como as Nações Unidas, ONGs e associações de vítimas dos supostos crimes, para coletar dados e testemunhos a fim de embasar um diagnóstico.

Essa etapa dura entre quatro meses e quase dois anos, de acordo com Claverie.

Se a procuradora Fatou Bensouda avaliar que tem elementos para passar à investigação mais aprofundada, pede autorização a um juiz do tribunal para fazê-lo. Havendo o sinal verde, intensificam-se as oitivas de testemunhas e a busca de documentos que possam servir tanto à acusação quanto à defesa –curiosamente, o trabalho de apuração da Promotoria aqui deve contemplar os dois lados.

Também nesse momento, o(s) suspeito(s) é (são) alvo de um mandado de prisão ou de uma notificação de comparecimento voluntário e tem direito a uma audiência para entender as acusações imputadas. Até dois meses depois, juízes definem se há base ou não para levar o caso a julgamento. 

Nessa última etapa (se não houver recursos posteriores), o suspeito pode ser condenado a até 30 anos de reclusão ou, em casos excepcionais, prisão perpétua.

Para o historiador Olivier Compagnon, da Universidade Sorbonne Nouvelle (Paris 3), é pouco provável que a requisição feita pelos países latino-americanos e pelo Canadá estimule Maduro a fazer qualquer gesto de conciliação na direção de opositores —ou mesmo a dialogar de fato com  organismos multilaterais.   

“É preciso lembrar que são territórios comandados por presidentes que encarnam a ‘guinada à direita’ da América Latina, como o chileno Sebastián Piñera ou o colombiano Duque”, diz ele, que co-organizou um livro sobre chavismo e democracia.

“Não se pode subestimar a dimensão claramente política desse documento [de quarta-feira]. É assim que Maduro e sua equipe o lerão.»

A solução para o impasse político, social e econômico em que se vê presa a Venezuela hoje seria interna, acredita o historiador.

“Posso estar errado, mas acho que ela não passará por qualquer diálogo ou negociação com opositores, mas por uma intervenção de uma fatia do Exército que terminará por abandonar o governo.”

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